POR CHICO TORRES
Eu junto meus cangaceiros
E grito à rapaziada
Defunto é minha lavoura
Este rifle é minha enxada
A chuva é a munição
Eu sou filho do sertão
Não perco uma só botada
(Antônio Silvino, cangaceiro pernambucano)

Explorado desde a década de 1920, o filme de cangaço tem seu verdadeiro desenvolvimento a partir da década de 1950. Entre o começo de 1950 e o fim de 1960, diversos títulos foram produzidos, quase todos eles com grande apelo popular. Não é muito difícil chegar à conclusão que, com o desenvolvimento do imaginário coletivo em relação ao tema, sobretudo através da figura de Virgulino Lampião, o cinema logo construiria suas narrativas em torno do mito. Surge uma espécie de Western brasileiro em que cangaceiros são geralmente representados através de suas características mais crueis, personificando uma maldade que se encontra em oposição à união matrimonial e à família. Tais filmes se alinham a uma estrutura narrativa que obedece à lógica do cinema estrangeiro comercial da época. O cangaço, em sua forma estereotipada, coube como uma luva nessa forma narrativa.
Por outro lado, há alguns filmes de cangaço que possibilitam um olhar mais cuidadoso sobre esse fenômeno tipicamente nordestino e, mais especificamente, sertanejo. Vou comentar sobre duas produções que julgo representativas. Não pretendo expor um estudo sociológico detalhado do banditismo sob a intermediação do cinema, mas analisar alguns aspectos que, relacionados a pessoas e situações reais, foram trabalhados criativamente em obras de ficção.
Os filmes em questão são O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Os tratamentos sociológicos e informações biográficas sobre o cangaço e seus personagens foram retirados de Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil, livro de Frederico Pernambucano de Melo.
Em Deus e o diabo na terra do sol, somos logo apresentados àquilo que, de fato, imperava no sertão nordestino: a ausência da lei estatal. Diferente do nordeste litorâneo, em que a monocultura estabeleceu a criação de grupos populacionais que estavam integrados a atividades econômicas e jurídicas relativamente estáveis, no sertão o indivíduo se vê em todos os sentidos isolado e, consequentemente, desassistido das leis constituídas pelo estado. Não há um patrão para obedecer e muito menos uma lei jusnaturalista a seguir.
Nesse sentido, o sertanejo está imbuído de um individualismo profundo, sua vida é pautada na busca solitária pela sobrevivência e por aventureirismos que se relacionam a um certo sentido épico da existência. É nesse contexto que se desenvolvem os arcaísmos tipicamente sertanejos. Em Deus e o diabo, Manuel (Geraldo del Rey) é atraído por dois arcaísmos básicos do sertão: o fanatismo religioso e, posteriormente, o banditismo do cangaço.
A história de Manuel começa por um conflito relacionado à propriedade privada. No sertão, pelo menos até a primeira metade do século XX, usurpar a propriedade alheia era considerado um crime grave, enquanto que atentar contra a vida do outro era algo relativamente normal. O crime de morte tem relação direta com a preservação da honra e por uma necessidade de vingança. Sem dúvida, a violência é o modus operandi do sertão e vence quem tem mais poder de fogo. Com as leis do estado frouxamente estabelecidas, resta a lei da bala, essa, sim, absolutamente presente e atuante. O conflito entre Manuel e o coronel acaba inevitavelmente em sangue.
Uma série de assassinatos ocorre, típicos crimes de honra e vingança. Manuel, o lado mais fraco da história, precisa fugir, iniciando assim sua aventura. Esse tipo de fuga é, inclusive, um dos elementos que fazem com que homens procurem refúgio no cangaço, ainda que esse não seja o fator principal do seu desenvolvimento. O indivíduo, diante de uma situação extrema que o obriga a fugir de vingança iminente, se vê sob a necessidade de se unir ao cangaço para sobretudo se proteger.
De todo modo, não é esse tipo de aventura que atrai Manuel. Primeiro ele é seduzido pelo sebastianismo, messianismo lusitano que possui sua variante sertaneja desde o período colonial. Manuel se torna um fanático religioso e, assim, alguém que, diante da brutalidade da vida, se aliena de sua própria condição de miséria e perigo.
O fanatismo religioso do sertão produzia uma alienação tão profunda na população que acabava por se tornar um problema para as autoridades locais. Seu caso extremo, ocorrido no final do século XIX, foi a Guerra de Canudos, comandada por Antônio Conselheiro sob um reacionarismo que atacava diretamente a autoridade do estado. Glauber Rocha estava atento a todas essas questões, e elas aparecem explicitamente em seu texto. Ele se debruça sobre o fanatismo religioso do sebastianismo como “ópio do povo”, mas também explora questões de classe que se davam através do interesse da igreja e do estado em eliminar possíveis movimentos religiosos que contrariassem os seus interesses. É nesse contexto que surge Antônio das Mortes, representante de mais uma tipologia do banditismo sertanejo.
Antônio das Mortes é o típico pistoleiro, matador de aluguel sem patrão e desgarrado de qualquer valor ético. Diferentemente do jagunço, espécie de guarda-costas de indivíduos importantes e com posses, o pistoleiro não estabelece nenhum tipo de vínculo com aquele que protege. É um solitário e o seu princípio é matar, não importa como. Ainda que Antônio das Mortes fique reticente em matar Sebastião, por um receio religioso e também por uma certa afinidade com o desamparo do povo, o dinheiro fala mais alto e ele aceita eliminar o profeta.
Morto, Sebastião, não pelas mãos de Antônio das Mortes, mas sim de Rosa (Yoná Magalhães), que o apunhala em um ritual de sacrifício que representa o paroxismo daquele delírio religioso, Manuel se encontra novamente desamparado. O seu vazio, agora, é preenchido pelo encontro com o famigerado Corisco (Othon Bastos). Em consonância com a realidade, o Corisco de Glauber é vaidoso e se considera o sucessor de Lampião. Também conhecido como Diabo Loiro, Corisco foi um dos principais subcomandantes do bando de Virgulino, tendo agido muitas vezes de modo independente, comandando o seu próprio grupo. Era sabidamente valente e raivoso, mas lhe faltava a habilidade diplomática e a inteligência estratégica de Lampião. Segundo os relatos, o que fez Corisco entrar para o cangaço foi sua motivação por vingança. Coincidência ou não, em Deus e o diabo Corisco sangra um sujeito e diz ter sido motivado por uma vingança que perdurava por vinte anos. Uma humilhação jamais esquecida. Segundo Frederico Pernambucano, muitos cangaceiros, se integrando ao banditismo sob a justificativa da vingança, carregavam tal princípio como uma garantia imaginária do que o autor chama de escudo ético[1].
1. Segundo Frederico Pernambucano, o cangaço se desenvolve, principalmente, sobre três instâncias definidoras básicas: o cangaço como meio de vida (é o caso, por exemplo, de Lampião, que viveu do cangaço por mais de duas décadas), o cangaço como instrumento de vingança e o cangaço-refúgio. Este é menos recorrente e produzia, segundo o autor, um tipo de cangaceiro que não procurava viver em armas por muito tempo.
Não queriam ser apenas bandoleiros, mas teriam motivações que se relacionavam com a manutenção de sua honra, sustentando assim uma justificativa, ainda que frágil, para os seus atos macabros. Esse escudo ético fez a fama do cangaço e foi corroborado por uma certa robinhoodização dos atos dos cangaceiros que por vezes se sentiam justiceiros.

Por outro lado, o Corisco de Glauber tem como característica principal um heroísmo místico e épico, ainda que seja a representação de um cangaço em decadência. Nessa representação de Corisco está presente a inevitável marca do destino trágico do herói. Ele desenvolve os seus monólogos em uma espécie de transe ao mesmo tempo poético e nostálgico, pois fazia apenas três dias que Lampião havia sido morto pelos macacos. Na fantasia de Corisco, o Dragão da Maldade (Antônio das Mortes,o seu principal perseguidor) devia ser eliminado pelo Santo Guerreiro (o próprio Corisco personificado, em seu delírio, como São Jorge). Ainda que o Corisco de Glauber seja excessivamente poético, ele acaba por revelar mais um traço concreto relacionado ao mundo do cangaço: um tipo de heroísmo envolto em todo o ambiente místico que perdurava nos arcaísmos do sertão.
Em O cangaceiro, marco do cinema de cangaço e, efetivamente, filme que inaugura o tema como gênero cinematográfico, alcançando grande popularidade no Brasil e no exterior, a narrativa se assemelha aos faroestes norte-americanos, mas há algumas particularidades que colocam a obra em uma relação mais próxima à realidade do cangaço. Inspirado no bando de Lampião, o filme expõe um grupo de cangaceiros que, além de fazer seus massacres e pilhagens, deixa transparecer todo o seu orgulho, vaidade e um desejo de liberdade causado por aquele estilo de vida. O comandante, assim como Lampião, possui os dedos cheio de anéis e uma vaidade excessiva com tais objetos. Todo o grupo está sempre adornado e há uma cena emblemática em que o bando é fotografado.
Esse exibicionismo é a fiel representação do cangaço como meio de vida. Os cangaceiros de tal classe se sentem coronéis sem terras e, como indica o título do romance de Maximiano Campos, sem lei nem rei. Diferentemente do cangaço por motivação de vingança, normalmente mais discreto e sem tantas ornamentações, o cangaço como meio de vida se dedicou à confecção de uma série de enfeites trabalhados no couro, no tecido e no metal. Como é sabido, o próprio Lampião confeccionava muitos de seus ornamentos. Há, portanto, um cuidado estético exagerado e uma exposição que parecia contrastar com a “vida de correria” sob a perseguição das volantes, tropas policiais especializadas em capturar cangaceiros.

Quanto mais o cangaço evoluía em seus desmandos, gerando uma situação que beirava o colapso social, mais os cangaceiros se enfeitavam e se exibiam. Basta olhar uma imagem do jovem Lampião e compará-la com fotografias de sua fase madura para entender a evolução do uso dos trajes cangaceiros.
O filme também retrata, ainda que com certa estilização que leva ao exótico, a relação entre o cangaço e as manifestações culturais. Além da vastíssima literatura de cordel que também servia como uma espécie de jornal daquilo que ocorria no ambiente do banditismo, os próprios cangaceiros versavam, tocavam e cantavam. O bando de Lampião, junto com seu líder, entoava cantigas com abertura de até três vozes. Lampião tocava sanfona, além de ser poeta e compositor, tendo criado o motivo de Mulher rendeira, espécie de xaxado que se consolidou como o hino dos cangaceiros e mundialmente conhecida justamente devido ao filme O cangaceiro.
Além dessa música, há no filme uma cena em que diversos trechos musicais são entoados, todos eles composições ou adaptações de Zé do Norte, compositor e consultor do filme sobre a linguagem nortista.
O cangaceiro, dentro de sua narrativa de aventura e perseguição, consegue complexificar a figura do cangaceiro tanto através desse contato com a música e a dança, quanto pela relação, ainda que conturbada, com a população sertaneja. Durante muito tempo, os cangaceiros conviveram com uma certa tranquilidade em meio ao povo e tinham uma relação de interesse com os coronéis. É em sua fase final que o cangaço se torna sinônimo de violência e roubo. Passa de um cangaceirismo endêmico para um cangaceirismo epidêmico.

À violência se misturam o épico e o religioso: medievalismo guerreiro e Padre Cícero; Dom Sebastião e Antônio Conselheiro. No sertão tudo se mistura com facilidade, porque Deus, ali, não dita ontologicamente o que é o certo e o errado. Quem manda verdadeiramente é o homem, é ele o diabo na rua, orando a Deus para que na próxima matança tudo ocorra como o planejado.
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- Segundo Frederico Pernambucano, o cangaço se desenvolve, principalmente, sobre três instâncias definidoras básicas: o cangaço como meio de vida (é o caso, por exemplo, de Lampião, que viveu do cangaço por mais de duas décadas), o cangaço como instrumento de vingança e o cangaço-refúgio. Este é menos recorrente e produzia, segundo o autor, um tipo de cangaceiro que não procurava viver em armas por muito tempo.