por Renan Eduardo
A primeira sequência de Câmara Escura (Marcelo Pedroso, 2011) é reveladora de seu todo. O fragmento de pouco mais de um minuto constitui a imagem-síntese de um movimento de guerrilha, de uma obra bélica, de um filme terrorista. Situada em uma rua tranquila de classe média recifense, uma panorâmica que vai do céu à rua revela uma casa qualquer, com muros altos dos quais só é possível avistar a copa das árvores e o telhado da residência, além de cercas elétricas e câmeras de segurança. O aparato de defesa protege uma fortaleza quase impenetrável, se não fosse pelo “dispositivo de infiltração”, nas palavras de Mariana Souto, que Marcelo Pedroso planta na porta dessa casa. À medida que o plano avança, aproximamo-nos da entrada e compreendemos que se trata de um POV, mas não um ponto de vista qualquer: é a visão da própria bomba, instalada à luz do dia nessa calçada. Ainda manuseado por Marcelo Pedroso, o dispositivo tenta adentrar ao interior do lote através do olho mágico disposto no portão, mas, sem sucesso, opta por penetrar a residência de outro modo.
Contudo, há uma trapaça, uma tática para que esta bomba passe do muro para dentro. Pedroso não põe de cara suas cartas à mesa e precisa ludibriar o destinatário para que a operação seja efetivada. Não há maneira segura de filmar o inimigo, é preciso driblar, falsear, trapacear. Em planos-detalhe, ainda no início do filme, vemos um par de mãos — provavelmente as do próprio realizador — preparar uma caixa com esmero e delicadeza. Como um cavalo de Tróia, a caixa de madeira é lixada, envernizada e revestida internamente com um macio tecido verde-musgo, abrigando a pequena bomba — ou melhor, o dispositivo de registro. Feito isso, todo o arsenal está pronto. Câmara Escura, portanto, se dá em um procedimento relativamente simples e possui a repetição de um método para adentrar a cada um dos lotes: Marcelo Pedroso toca o interfone da casa, anuncia que há uma encomenda para os residentes, corre até o carro — que o filma à distância — e o veículo acelera depressa em rota de fuga. O que poderia assemelhar-se a uma brincadeira infantil de tocar a campainha e sair correndo ganha, aqui contornos de uma ação terrorista, criminosa, bandida. A postura do realizador (e da equipe) é a de alguém que acabou de plantar uma bomba e precisa fugir rapidamente para não ser atingido pela explosão.
Feito esse primeiro movimento, no dia seguinte, a equipe de filmagem retorna às casas onde os dispositivos foram deixados com o objetivo de recuperar as imagens e tentar justificar seus “crimes” de invasão. Finalmente convidados a entrar em território inimigo, a câmera escondida que mira o chão endossa a dimensão de marginalidade, de coisa “errada” dessa postura. Ainda que por vestígios de imagens, Pedroso insiste na dimensão do registro desse confronto. Câmara Escura é um curta em que o processo de feitura e a materialidade da obra caminham juntas.
Trata-se de um filme-processo ou, melhor dizendo, de um filme em processo. Como o próprio realizador diz nas entrelinhas, sua forma e sua feitura tateiam o terreno da descoberta conforme as filmagens se desenrolam. Contudo, ainda que Pedroso indique certa abertura ao mundo filmado, o cerne fílmico indica uma rigidez no gesto: tocar o interfone, entregar a caixa, sair em fuga e voltar no dia seguinte para obter acesso às imagens.
Na repetição do gesto, torna-se possível identificar mais um padrão: as residências invadidas por esse dispositivo-câmera-bomba. A descrição feita acima, ainda que referente à primeira residência que o filme nos mostra, é representativa de todas as outras: muros altos, cerca elétrica e câmeras de segurança apontadas para a rua que dificultam não somente o acesso ao interior do lote, mas também qualquer resquício de comunicação ou visibilidade.
Nesse sentido, mais do que um “dispositivo de infiltração”, temos um dispositivo de relação, ou melhor, um dispositivo que constata a não-relação entre quem filma e quem foge da filmagem. A câmera, portanto, surge como delatora das barreiras entre os de dentro e os de fora, entre a via pública e os esconderijos. Os muros separam as classes e o filme evidencia o confronto, o dispositivo torna a propriedade vulnerável e o procedimento emerge como uma maneira de penetrar a fortaleza onde esses “outros” se escondem.
Sob diferentes estratégias, é curioso notar que às margens do período histórico em que Câmara Escura foi realizado, um forte interesse na vida privada da classe média tornou-se tema recorrente em diversos documentários e documentaristas brasileiros, também em algumas ficções como O Som Ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012) e Que Horas Ela Volta? (Anna Muylaert, 2015). Contudo, o que há de vizinhança nesses filmes é um sobressalto do dispositivo para acessar o modo de vida desses “outros”. É como se os filmes (e realizadores) constatassem que não é mais possível estabelecer uma relação cênica entre o “nós” e o “eles”, de tal modo que é preciso que a câmera seja mediadora desse confronto. Isto é, o dispositivo surge como delator de uma não- conciliação entre classes. Na própria filmografia de Marcelo Pedroso podemos pensar em Pacific (2009) como um exemplo possível. Distante do banditismo de Câmara Escura, o filme é realizado inteiramente com filmagens feitas por passageiros de um cruzeiro que carrega o mesmo nome do filme. A postura aqui é observar a vida desses “outros” a partir de uma autoinscrição desses sujeitos em cena — ou seja, eles próprios têm “controle” sobre seus modos de representação. Quem filma é também o filmado.
De modo similar, Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012) também partilha de algumas estratégias de filmagem: Mascaro dá uma câmera para sete adolescentes filmarem o cotidiano de suas empregadas domésticas. Aqui, há também a dimensão de ceder o dispositivo ao outro, entretanto, diferentemente de Pacific há um embate de classes intrínseco à cena: o patrão que filma a empregada. Podemos pensar ainda em Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, 2009) ou Vista Mar (Victor Furtado, Rodrigo Capistrano, Pedro Diógenes, Claugeane Costa, Henrique Leão e Rúbia Mércia, 2008), nos quais os realizadores precisam blefar de suas verdadeiras intenções para obter acesso a luxuosos prédios ao redor do Brasil e aos modos de existência de seus moradores — quase como um filme etnográfico entre sujeito e objeto. Ou também em Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2014), em que Lincoln sampleia imagens extraídas de celulares roubados para fazer um filme em que “a classe média se filma e nóis assiste”, como indica sua sinopse.
Portanto, o que há de comum em todos esses filmes é a necessidade de sabotar, ludibriar, ceder o dispositivo para capturar imagens, travar confrontos e expor as contradições entre as classes. Se, nas palavras de Jean-Claude Bernardet “a classe média não se autorrepresentava no cinema brasileiro”, o que realizadores como Péricles, Pedroso e Mascaro fazem, enquanto operação, é inverter essa lógica: tornam visíveis os modos de vida desses “outros”, lançando luz sobre a caverna dos leões. Em maior ou menor grau, expõem as vísceras e contradições de uma classe que não deseja ser vista, que se oculta atrás de câmeras e muros.
De volta à Câmara Escura, mais do que capturar as imagens do interior dessa fortaleza, o filme persegue o procedimento que ele mesmo criou. Em outras palavras: o gesto pelo gesto, o crime pelo crime. Isto é, não se trata de devolver o olhar àqueles que direcionam suas câmeras de segurança para a rua, mas de transformar a objetiva em um artefato de violação, em um dispositivo de violência de classe.
Nesse sentido, é preciso ir onde o inimigo está, avançar sobre seu forte, travar um confronto em sua própria propriedade. Se, em um primeiro momento, temos a lente que mira a rua e viola o anonimato do espaço público, o dispositivo de Pedroso assume uma dimensão terrorista ao violar o direito à propriedade. Portanto, no curta a lente é um objeto de uma dupla violação: se a classe média-alta tem o direito de nos filmar na rua, também temos o direito de filmá-los dentro de suas propriedades.
Por esse ângulo, é irônico notar como os personagens relatam pavor ao descobrirem que estão sendo gravados. Em um dos momentos em que o filme explicita ainda mais sua postura, os relatos de susto são sobrepostos a imagens das câmeras de segurança das residências em questão. O gesto não apenas ironiza o relato, quase desqualificando-o, mas também torna seus procedimentos excessivamente didáticos. Se não estava claro antes, agora está. Ou seja, mais do que o medo de ser invadido, é o pavor de ser visto — “eu não quero minha imagem em filme seu, eu não autorizo porque isso aí é um crime”, diz um dos personagens.
Aqui, reside um outro duplo que tange à propriedade. É curioso notar que, apesar de todo o esforço, o que se obtém enquanto matéria é somente rastros de imagem, vestígios. A lente que surgia como artefato violador só deflagra uma das partes: a visualidade dos “de dentro” é preservada, ao passo que os “de fora” são expostos — “quem está falando com a gente? É aquele moreno aqui no portão?”, identifica uma das invadidas pela câmera de segurança que vigia a equipe de filmagem. Frente aos limites da visualidade, o que emerge como verdadeiro artefato violador é aquele que transpõem as barreiras do visível: o som. Não que isso signifique que o som pertence à ordem do invisível e sim que seu aparato de visibilidade dribla as vigas de concreto, delata quem se esconde nas sombras. Em Câmara Escura, a classe média, portanto, se manifesta principalmente na dimensão sonora, espaço onde seu aparato de controle da autorrepresentação escapa.
É nesse âmbito que emergem falas de caráter punitivista, como em Um Lugar ao Sol, e o jogo de gato e rato parece, finalmente, encontrar sua finalidade. Enquanto a preservação do anonimato está ligada à imagem, as vozes emergem no filme com a mesma clareza de uma foto 3×4. A dimensão do relato adquire força e, ao que poderia ser caracterizado como “um olho não governado pelas leis da perspectiva”, talvez pertença a outro sentido. Sons apesar de tudo?
*
