BANG BANG: A PARTE DO LEÃO

por Luiz Soares Jr.

Um slapstick chanchádico como Bang Bang é a ideal plataforma para digressões humorísticas e sinistramente paranoicas sob a égide de vinheta fantasista. E por quê? Porque as grandes formas de impassibilidade trágica diante do irrevogável, nos tempos contemporâneos que correm, são o chiste, a piada interna, a irrisão: grandes verdades são ditas gargalhando, para não insuflar os mais moralistas ou açular os asseclas do denuncismo, no Brasil pós-AI 5; A idade da Terra, filme terminal de Glauber, era também um exercício, entre histérico e iracundo, sobre a miscigenação antropofágica cujo paradigma maior foi o estabelecido nos filmes mexicanos de Buñuel.

Bang Bang também é um filme miscigenado, mestiço em matéria de gênero e leitmotif, mas o reductio ad absurdum que o consagra como um dos filmes mais cruéis de seu tempo (à la Artaud: crueldade é lucidez) é seu gênio paródico; e para celebrar a paródia, a alegoria, a paráfrase e outros ismos, Bang Bang se serve de distintos e eficientes vetores de desconstrução: a bandidagem aqui é a parte de leão de um cinema que precisou aliciar os modus operandis de representação possíveis para não sucumbir às agruras históricas mas também retóricas que, com os estertores do Cinema Novo, também se faziam prementes para dar conta de um país que, saturado do cinéma verité e de cinema moderno, precisava do sangue novo, terrorista e colorido, do cinema marginal para se renovar: não quero, com esta reflexão, contrapor ambos os cinemas, mas sacar que Bang Bang, como todo cinema antropofágico, se serve dos meios (numa arte materialista, como deve ser) para, segundo Deleuze, perverter os fins.

Os mesmos planos-sequência e locação do cinema novo e do moderno comparecem aqui, porém não mais com propósitos ontológicos e realistas (à la Bazin), e sim de delírio sistemático e explosivo, de guerrilha de vanguarda: desde a aparição do título, uma bomba em letras garrafais que avançam para o espectador com impulsão de ameaça ominosa, percebemos que a vocação documental, tantas vezes lírica e rapsódica (Lourcelles os chamava de estetizantes), do cinema novo deve ser solicitada para comê-lo de dentro, como certos abutres com o ninho de inocentes cotovias; um filme como Bang Bang nutre-se, como toda obra de vanguarda alimentada, à la Tropicália, por elementos da cultura pop que antes fecundam que apodrecem seu tirocínio extremista, é um anti-thriller entrópico, filme performático e demonstrativo do uso do plan tableau com focais grande oculares, mas também o espécime de obra que achata e encurva virtuosamente a linha horizontal do tempo para nele inscrever cerimônias iniciáticas, um locus de mise en scène suntuosa encravada no coração de uma clareira esterilmente repetitiva, um ritornello que escalona iconicamente o percurso do protagonista segundo a lógica do pesadelo de um beco sem saída, e neste sentido não há como não ver no filme igualmente uma metáfora bombástica, iracunda e cheia de verve retórica, sobre as trajetórias saturadas de treva do país pós-68.

Bang Bang é o filme terrorista por excelência, mas urde seu arsenal de guerrilha segundo a lógica, agora elevada ao quadrado, do sistema e da Summa ateológicas, de um cinema da digressão que, como dito acima, se serve dos restos e dos rastilhos do cinema novo para melhor consumi-lo, como a lei de Hilel que o Cristo invocava acabara por consumar a Torá e os profetas.

Não se trata precisamente de uma obra dialética, mas de um salto vultoso de verbo performativo, que é, segundo Austin, aquele que ocorre ao mesmo tempo em que a ação que ele descreve (a definição, conforme os trâmites legais e filosóficos é aquele ato de fala que implica a realização simultânea, pelo locutor): em qual sentido?

Cada plano, capturado segundo o andante de um cerimonial econômico mas prenhe de ritual, deve ser visto como aquilo que realiza, na cabeça do espectador, o papel de uma denotação explosiva; os planos não estão aí para preencher a duração do filme ou graduar seu espaço segundo a anedota, agora tardia, de uma obra que conta; antes, Bang Bang se interessa pela fixação icônica não do conto (que é fluido e procede por acumulação narrativa, como por orientação teleológica: o “the end”) mas daquele que mostra mostrando, com unção litúrgica (embora agora ateológica, mundana, como lá foi dito) tudo aquilo que acontece num mundo reduzido à platitude da sequência de cerimoniais, de ritos, de estagnação hierática com propósitos de iluminação profana, como ontem surrealistas como Aragon e Breton, para saudar a vetustez dos monumentos de Paris.

Tonacci flerta com o quadrinho, o teatro do pobre, os truques de prestidigitação de feira e circo, as marchinhas de carnaval encenadas para a câmera, a fotonovela, mas segundo o diapasão, enunciado na divisão estrita do filme em planos e sequências muito longos e muito estamentais daquilo que merece permanecer no imaginário do espectador, como arrimo de elaboração alegórica. Filmamos como se o Brasil (não devidamente localizado, declarado, é certo) estivesse sendo implodido, e a cadeia de entidades-planos isolados entre si, que fornecem ao filme sua paronomásia perversa e dão esta precisa impressão a nós. No entanto, sem nada mostrar de exatamente chocante, letal, venalmente violento. Estamos lá, com os sinais de fumaça enegrecida, os destroços do acidente, o gás molotov; como em outro filme de guerrilha, Jardim das espumas (1970) de Luiz Rosemberg Filho (aquele, no entanto, que age segundo uma linha infinitamente mais entrópica, que dá à distopia descrita a sua saturação glacial, no meio do lixão e da estrada enlameada), que vemos o apocalipse de que os filmes são debitários.

O cinema povero classicista antropofágico de Tonacci (e oxímoros sempre falarão melhor que eu) se concentra no hieratismo e no cerimonial, sequência a sequência ordenados – em suma: da mise em scène – para falar de caos sem remissão, de revolução abortada, de fim de mundo; se o Jardim de espumas abdicava deliberadamente da ordem de articulação dos planos, se era amorfo para denotar na própria carne do filme a agonia escatológica de que sofriam seus personagens, Bang Bang, talvez por meios diametralmente opostos – unção ritual, lentidão cerimonial, iconicidade paratáxica (como a que Adorno leu no Hino a Patmos), embora, como na fórmula de Godard, também terrorista, achada na lixeira do cinema novo. Há, aliás, uma citação selon la lettre de Weekend à francesa, com o carro incendiado na estrada -, aspire ao mesmo inferno, mas com teorema e método de cartesiano expletivo. Loucura embora, tem lá seu método, já dizia o pai da Ofélia de Hamlet e os kantianos geômetras de Sade e Bang Bang faz como os erotômanos do Sartre, autores deste culto suntuoso que jamais devem abdicar de todas as feitiçarias possíveis ao teatro do mundo que é a grande plenipotência do cinema, arte (quando moderna) do ao vivo e da montagem de atrações.

O minimalismo genial, a ironia ática e a iconicidade de Summa dos tableaux de Bang Bang atestam a existência de um cinema que, em um mesmo e outro movimento, herda (do cinema novo, das chanchadas) e lega à posteridade de cineastas atentos ao seu métier um paradigma, um horizonte transcendental, um emblema. Bang Bang não é apenas um grande filme, mas um marco de cinema que brinca sem abdicar do rigor formal, que exercita o fair play do jogo dos significantes sem renegar sua ascendência na sintaxe e na semântica do cinema que herda. Quando assistimos à bailarina andaluza em ação, intuímos mais que sabemos que esta imagem de evanescência langorosa é igualmente um salto abrupto do mundo venal, canalha e servil dos bandidos de subúrbio para um universo simbólico prenhe de transfiguração, mas ambos pertencem ao mesmo filme, como se a infraestrutura e a superestrutura enfim se reconciliassem, sem senões nem desvãos. A espinha cervical de todo filme com aspirações ao Eterno é a analogia do stimmung poético, pois nunca existiu um logos mais generoso do que a poesia para integrar, em sua trilha pneumática, a todos os sonhos possíveis, inclusos aí os pesadelos urbanos epocais, além dos devaneios do flâneur: é um grande filme de seu tempo, e em consequência uma obra-prima do porvir.

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