Por João Campos
E os presidiários são grandes sonhadores.
Fiódor Dostoiévski em “Escritos da casa morta”.
Primeiro há o som da ação do fogo sob a tela preta. O crepitar das chamas se mistura aos latidos de cachorros – ecos da vizinhança. Num átimo surge a imagem de um incêndio. É noite, vemos ruínas de uma construção em chamas num terreno baldio. Uma inscrição no fogo situa topograficamente a fábula: “Sol Nascente (Ceilândia/DF)”. Mato seco em chamas (Adirley Queirós & Joana Pimenta, 2022) acontece na periferia da periferia de Brasília, isto é, à margem de Ceilândia. Mais que isso, o filme começa onde Era uma vez Brasília (Adirley Queirós, 2017) termina: no fogo.
A favela do Sol Nascente é uma das maiores áreas de ocupação irregular do Brasil e da América Latina. Oficialmente, ela se encontra na Região Administrativa de Ceilândia, uma das cidades- satélites que compõem o Distrito Federal e seu surgimento está diretamente relacionado a um processo histórico de ocupação desordenada, algo típico de regiões metropolitanas em expansão, que não conseguem atender à demanda por habitação popular de maneira regular e planejada. Nos jornais, Sol Nascente é constantemente associado ao crime organizado e violência extrema. Logo, o filme de Queirós e Pimenta parte dessa cena para elaborar uma imagem complexa da vida que acontece na região. O imaginário do crime é usado, aqui, com fins surrealistas e rebeldes.
O longa-metragem acompanha as ações de uma gangue de mulheres que organiza um esquema clandestino de extração de petróleo e venda de gasolina no Setor Habitacional Sol Nascente. As mulheres, conhecidas como Gasolineiras, articulam uma aliança com os motoboys da cidade que, em troca de gasolina barata, se juntam a elas, formando uma espécie de exército fora-da-lei. Aliado a isso, uma das personagens se candidata nas eleições do Distrito Federal pelo fictício Partido do Povo Preso (PPP), levando a cabo uma campanha performática em aliança com os motoqueiros pelas ruas do Sol Nascente. Este é o mote ficcional da obra, que se mistura às histórias de vida das personagens – todas ex-presidiárias que vivem em Ceilândia.
A obra é triangulada entre três protagonistas: Chitara, a líder do bando; Léa, a guerreira; e Andréia, a política. A primeira atriz é meia-irmã da segunda, como passamos a conhecer no decorrer do longa-metragem. Entre os motoqueiros, encontramos Cocão, que também é meio-irmão de Chitara e Léa. Este personagem funciona, no drama, como líder dos motoboys – a ponte entre as Gasolineiras e os entregadores do Sol Nascente. Os nomes e vulgos reais das atrizes e atores são usados na obra, num gesto que borra as fronteiras entre documentário e ficção.
Mato seco em chamas parte de uma metamorfose artística do imaginário de afirmação da soberania nacional do Brasil através do petróleo.
O slogan “O petróleo é nosso!” da época do governo de Dilma Rousseff é subvertido pela imaginação dos artistas. Contrabandeado para o universo dos excluídos e periféricos, a frase se transforma numa pergunta insólita: “e se o petróleo fosse de nóis?”. E se o petróleo fosse interceptado por aqueles que nada possuem? E se a população negra e periférica tomasse posse dos bens coletivos estratégicos da nação? A obra de Queirós e Pimenta constrói uma fábula a partir desse deslocamento imaginativo, erigindo cenas que fazem aparecer lampejos de um mundo pós-capitalista desde a extrema periferia da capital do Brasil.
A primeira imagem do fogo abre caminho para a aparição de uma mulher negra de perfil. Ela fuma cigarro enquanto consulta um dispositivo tecnológico em seu pulso – é Andréia. A engenhoca produz barulhos como em um clichê de ficção científica. O fogo continua em cena, mas ao fundo. A mulher olha para o fora de campo e solta fumaça. Sirenes se juntam à sinfonia das chamas na banda sonora. Um clima de tensão é tecido.
A mulher veste roupas pretas e está montada numa motocicleta. Ela termina pacientemente seu cigarro e arranca com o veículo noite adentro. Em seguida, os créditos iniciais do filme aparecem sobrepostos a uma cena em que o bando trabalha na extração de petróleo num dos ambientes principais da obra: o estreito lote em Sol Nascente.
O esconderijo da gangue é estranho, a começar pela maquinaria que o lote ostenta em seu quintal. Um plano médio mostra, bem no meio do lugar, um cavalo de pau, unidade de bombeamento mecânico utilizada na extração de petróleo. Este objeto antiquado e rudimentar, um tanto fora de moda e desatualizado, surge como aparição surrealista na paisagem da periferia brasiliense, causando estranhamento em quem assiste seu movimento. A máquina soca o chão e bombeia o líquido preto enquanto o bando trabalha. À direita, vemos uma mureta com os tijolos à mostra e um tonel cuspindo fogo. À esquerda, encontra-se um casebre com vigas de ferro encostadas. Um poço artesiano e o portão de ferro compõem a cena ao fundo do quadro. Um retrato noturno da plataforma clandestina de intercepção de petróleo das Gasolineiras do Sol Nascente.
O reenquadramento das cenas pelos cortes nos aproximam das pessoas a trabalhar, revelando o grupo coletando o material do fosso em baldes. A banda sonora mistura o som do crepitar das chamas com o barulho do petróleo correndo no canteiro de obras fora-da-lei. Enquanto despeja o líquido no balde de Chitara, o homem diz: “Carai, petróleo du bom ein?”. Chitara responde: “Tô te falando parceiro…” e solta uma risada contida. O trabalhador segue girando a manivela e o petróleo continua jorrando. O corte nos transporta para um terreno baldio à noite. O plano geral mostra o horizonte planificado do Distrito Federal, caracterizado por um feixe reto de postes de iluminação ao fundo do quadro. As mulheres do bando estão sentadas à beira da fogueira curvada pelo vento forte. Um carro e uma motocicleta se escondem na escuridão, à esquerda do quadro. Uma das gasolineiras acende um foguete com a ajuda de Andreia e solta o disparo para o céu. É uma cena típica de filmes de gângster: a negociação clandestina. Chitara observa o fogo fora de campo num primeiríssimo plano de seu rosto. Ela fuma e assopra fumaça enquanto é enquadrada obliquamente. O ronco de uma multidão de motocicletas começa a gritar na banda sonora. Notando a aproximação de seus interlocutores, a líder das Gasolineiras olha para sua direita. Um corte distancia novamente nossa visão da cena, mostrando uma constelação de faróis que emergem do breu da noite em Ceilândia.
Os motoqueiros chegam em bando e sua cinética apresenta contornos peculiares. Em outras palavras, em Mato seco em chamas, as motos se deslocam de uma maneira coreografada. Usando a profundidade de campo, Queirós e Pimenta fazem o grupo chegar pelo fundo do quadro: as máquinas emergem da noite e se aproximam das Gasolineiras lentamente. Primeiro enxergamos os faróis que balançam no escuro. Em seguida, os motoqueiros, já inteiros na imagem, realizam um movimento circular para rodear o bando de Chitara. As motocicletas gritam enquanto cercam a fogueira e as mulheres em seu rito de entrada. Cortes nos mostram o semblante da líder e Andreia, que observam com cautela a performance maquínica feita de movimento e o som violento dos motores.
A paisagem sonora que o bando dos motoqueiros produz em cena rompe o silêncio da noite e bagunça os sentidos do espectador. O som das motos é, em Mato seco em chamas, signo de anunciação da performance dos motoboys, além de uma forma de desobediência estética que perturba os códigos de um cinema bem-comportado e elegante. Essa sonoplastia contribui para que o filme de Queirós e Pimenta se afirme como obra ruidosa e disruptiva. Nas palavras de Adirley Queirós:
E os motoqueiros? O que eles gostam, na verdade, é de puxar, arrancar motor, o barato deles é o som da moto. Quando estávamos na montagem do filme, falávamos assim: “Vamos botar isso para tremer a sala [de cinema], porque é disso que eles gostam. Põe a sala para tremer, se não gostar, sai da sala.” Queríamos ouvir o som tremer, não queríamos um som educado, no sentido de uma educação cinematográfica[1].
Essa dança das motocicletas contribui para a criação de um corpo coletivo para os motoboys. Realizando movimentações dissonantes em relação à cinética ordeira da cidade, eles instauram uma coreografia estilizada que refunda, no plano da imaginação, o status desse personagem urbano. De trabalhadores precarizados e despossuídos, se tornam sujeitos políticos que negociam suas condições de vida e alianças, e ainda confrontam a ordem policial estabelecida no universo fabulado. Dessa forma, a coreografia reforça o caráter coletivo e combativo dos motoboys no filme de Queirós e Pimenta.
Depois da entrada performática, os dois bandos negociam. Cocão, liderança dos motorizados, pergunta: “Chitara, tem fogo aí?”. A líder delega: “Dá moral de incendiar lá Andreia?”. A mulher vai até o carro e abre o porta-malas repleto de galões de gasolina. Ela pega um dos recipientes, joga o líquido no chão e incendeia. Cocão acena positivamente e convoca seus companheiros para recolherem a mercadoria e homens de capacete surgem para buscar os galões de combustível. Antes de ir embora, Cocão dá um recado para Chitara: “Se liga que o Portuga tá saindo aí”. A gasolineira responde com rispidez: “Mermão, dá ideia pra aquele filho da puta lá que nóis aqui tá si fudendo pra recado de cadeia”. E assim os motoqueiros partem em debandada, levantando poeira do chão terroso de Ceilândia.
O diálogo cifrado levanta a suspeita: algum inimigo do bando foi liberto da prisão. Diante disso, o grupo tem que agir. Na cena seguinte, Chitara aguarda sua presa na penumbra. A enxergamos de perfil em primeiríssimo plano de seu rosto. Ela fuma um cigarro e observa os arredores. O barulho das motocicletas surge na banda sonora – sabemos que algo acontecerá. Um homem surge do escuro, entrega uma arma a Chitara e diz: “tá eu e o Pitbull lá na entrada”. O que se segue é uma cena de execução.
O plano geral mostra um carro se deslocando à noite. Não se vê nada além do feixe horizontal de luzes da cidade ao longe e fiapos da estrada de terra iluminados pelo farol do automóvel. A câmera faz uma panorâmica para a direita, seguindo o percurso da máquina. Um corte reenquadra a cena, mostrando o carro estacionando perto do veículo de Chitara. Sai um homem que exclama: “Chitara! Chitara!”. Passamos para um primeiro plano da líder das Gasolineiras mirando com sua pistola. Ela dispara e acerta o adversário. A mulher sai de seu veículo e se aproxima do homem caído no chão. Outro disparo confirma a morte do infeliz, que se convulsiona ao receber a carga. Após o homicídio, Cocão e Pitbull chegam com suas motocicletas para auxiliar a mafiosa. Eles carregam o corpo para o fora de campo e a cena se encerra. Uma emboscada digna de um filme noir. O filme opera, portanto, uma mescla entre ficção dramática e seus gêneros (noir, sci-fi, faroeste), teatro épico e documentário etnográfico. Seguimos os corres das bandoleiras na periferia de Brasília numa perspectiva que dá substância ao espaço urbano filmado, fazendo a cidade se tornar protagonista da obra através da perambulação de seus personagens. Nos interstícios da trama ficcional são reveladas facetas da vida real das atrizes. É o caso da cena do culto evangélico, que mergulha sensorialmente no ritual dando forma ao canto de Andreia e seus parceiros de fé aos moldes do cinema direto de Jean Rouch. O filme dá tempo e espaço ao evento, fazendo uso de planos-sequência que desvelam a cantoria em toda a sua beleza e emotividade.
A opressão do Estado se faz presente através do camburão da polícia, figura monstruosa que vara as noites de Mato seco em chamas em sua ronda. O automóvel circula pela periferia escoltado por drones no ar, analisando e mapeando a cidade sitiada. Numa cena, um dos policiais ensina aos outros o gesto da saudação nazista sob os dizeres “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, fazendo referência a um dos slogans do governo de extrema-direita de Jair Messias Bolsonaro. A performance brechtiana faz uma montagem entre Bolsonaro e nazi-fascismo, criando um comentário gestual sobre a conjuntura política da época. As forças policiais bolsonaristas são, no filme, soldados neonazistas operando uma limpeza social na periferia.
A imagem do gangsterismo ceilandense é reinventada como fúria popular, tomando a forma de desobediência civil performada em cena e quando os motoboys se rebelam contra os policiais nazi-fascistas, há o ápice dessa conversão. A sequência mostra as forças policiais circulando na cidade em vigília. De repente, os motoboys atacam o camburão, invadindo seu interior. Os tiras são mortos e os motoqueiros ocupam o caveirão até o amanhecer, quando começam a desmanchar o automóvel para, ao fim, incendiar sua carcaça num plano frontal da ação rebelde.
Os cenários urbanos de Mato seco em chamas são terrenos incendiados. A cenografia usa o fogo como forma expressiva, contribuindo para a (re)construção de Ceilândia como cidade sitiada. A cidade se torna palco de confronto – uma guerra porvir. O estado de sítio é, como disse Walter Benjamin, “o status quo de certa parcela da humanidade”. O incêndio é a regra dos pobres no capitalismo. O fogo é fundo e figura na obra de Adirley Queirós e Joana Pimenta, que experimentam a poética das chamas neste longa-metragem. O mundo que o teatro do gangsterismo de Mato seco performa é um universo incendiado – uma sociedade em vias de destruição. Os pactos que sustentam a nação e a opressão contra os pobres se tornam insustentáveis, tensão que desemboca no conflito generalizado, na rebelião total dos oprimidos em cena. A cidade, figurada como microcosmo do Brasil, é reinventada imaginativamente sob o signo do fogo.
O filme interrompe o drama com a inscrição de arquivos policiais reais: Léa é presa injustamente por tráfico de drogas durante o período das filmagens. Uma voz sóbria lê o processo de Léa enquanto vemos os documentos de sua prisão e fotos da atriz no quintal de sua casa. Os documentos dão lugar a um monólogo de Chitara para sua irmã, texto que expressa o entusiasmo das duas com a feitura do filme. O momento metalinguístico revela o processo de criação da obra como experiência aventuresca – um ritual transformador.
O real proporciona a matéria do efeito de distanciamento aqui executado, operação que desnaturaliza a opressão da polícia nas periferias. A remontagem dos rastros da prisão de Léa tem o efeito estético de tornar o Brasil da polícia militar insuportável para o espectador da fita. Nada mais próximo do teatro épico brechtiano do que a realidade dos condenados da terra.
Mato seco em chamas (2022)
E Mato seco em chamas termina em coreografia, dando um final proléptico para a fábula. Cocão pilota sua moto com Léa na garupa. A câmera acompanha de maneira frontal o movimento da motocicleta que balança no solo irregular do Sol Nascente. Um exército de motoqueiros surge pouco a pouco nas esquinas, formando uma motociata dos despossuídos. Na banda sonora, toca DF Faroeste, música do rapper Mente Consciente que descreve as guerras de gangues que assolavam o Distrito Federal de outrora. Imagem do passado, rearticulada no presente de novos confrontos nesta performance que inventa um corpo coletivo e combativo dos oprimidos frente a uma guerra porvir, ecoando o verso do artista supracitado: “O povo da favela, meu irmão, sabe como se defender”[2].
Mato seco em chamas taca fogo no Brasil de Bolsonaro e seus militares, tomando posição contra o status quo através da imaginação surrealista da periferia de Brasília. O uso da figura do gangster no filme cria uma paisagem crítica do Brasil contemporâneo do ponto de vista dos novos oprimidos do capitalismo caracterizando esse épico como um dos grandes filmes utópicos do cinema brasileiro do século XXI.
[1] ROCHA, Lorenna. “A circularidade do tempo de Sol Nascente: uma conversa com Adirley Queirós e Joana Pimenta | 55ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro”. Camarescura. Disponível em : https://camarescura.com/2022/11/16/adirley-joana-entrevista-por-lorenna-rocha/
[2]“Código de Honra”, de Mente Consciente.
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