por Bernardo Moraes Chacur

A principal fronteira do banditismo não é jurídica.
Há um arquétipo nos faroestes: o ex-marginal que, convertido em agente da lei, se vê na obrigação de enfrentar um velho parceiro. Para tanto, o personagem também precisa brigar consigo mesmo, desfazendo antigos laços de honra e afeto, reafirmando seu novo conjunto de valores: a lei, o dever.
Essa sublimação corresponderia a um percurso histórico, parte importante da mitologia do western: a selvageria necessária durante a fase “civilizatória”, se tornaria indesejável durante o estágio do sedentarismo. Mas há um elemento, constantemente em cena nos filmes do gênero, que complica essa narrativa: a trajetória da conquista do Oeste é a da expansão do capitalismo. Nesse contexto, o limite entre crime e legitimidade se ajusta de acordo com a conveniência.
São observações que oscilam entre texto e subtexto, entre mais ou menos desengano. Há, por exemplo, a figura do homem de negócios que tenta sabotar a prosperidade geral em benefício próprio (como em Aliança de Aço, dirigido por Cecil B. DeMille em 1939). Ou a do facínora que se converte em homem respeitável em função da prosperidade econômica e cujos interesses passam a se confundir com os da cidade (Entardecer Sangrento, Budd Boetticher, 1957). Ou, ainda, xerifes ou juízes que institucionalizam o roubo (Região do Ódio, Anthony Mann, 54).
Três iterações, às quais poderíamos acrescentar muitas outras. Situações em que a delinquência é praticada a mando de especuladores, barões da ferrovia, grandes fazendeiros. Significativamente, os meios ilícitos são mostrados como uma continuidade das atividades lícitas: um business as usual. Nada nesses filmes parece sugerir que estamos diante de exceções. Antes, pela sua manifestação reiterada, acabam sugerindo uma constante.
Pode-se argumentar que, pelo menos no contexto da Hollywood clássica, todas essas histórias são finalmente otimistas, uma vez que quase sempre terminam com a vitória da comunidade, do homem de princípios, ou da união ideal entre os dois. Mesmo assim, a partir da riqueza de exemplos, é possível defender que um componente crítico sempre fez parte do gênero, como consequência lógica de várias de suas tramas, como as descritas nos parágrafos anteriores.
Reinado de Terror (Terror in a Texas Town, Joseph H. Lewis, 1958), é uma variação interessante desses temas. Temos novamente dois bandidos que se conhecem de longa data: um deles (interpretado por Sebastian Cabot) se tornou magnata, o outro (Nedrick Young) segue pistoleiro. O primeiro, sabendo haver petróleo em um lugarejo, contrata o segundo para expulsar os pequenos proprietários da região. O empresário já possui vantagens em relação aos camponeses (incluindo a documentação fajuta, porém legalizada, que lhe confere a posse daquelas terras), mas nem por isso abre mão da violência. Assassinatos e a influência político-judiciária são mobilizados de forma coordenada, sem incompatibilidade essencial.
Reinado de Terror (1958) de Joseph H. Lewis)
Enquanto um dos malfeitores vive no conforto, o outro, ainda fora-da-lei, sofre de uma condição frequente entre a mão-de-obra: sequelas físicas e psicológicas associadas ao desgaste ocupacional. Nada disso o impede, contudo, de seguir exercendo a sua função.
Já o herói (Sterling Hayden) é, atipicamente, um baleeiro sueco, filho de uma das vítimas. Note-se que o imigrante escandinavo é um coadjuvante habitual nos westerns[1], retratado como simplório e otimista, um estrangeiro ideal (e não-racializado), que confia nas promessas da América legalista. Esse vínculo entre o protagonista e o estereótipo é bem explorado em Terror in Texas Town: o personagem de Hayden procura as vias legais como forma de resolução dos conflitos ao invés de recorrer às armas de fogo, enfrentando cada agressão com um corajoso estoicismo. Mesmo no embate final, inevitável, prefere o velho arpão ao revólver, rejeitando a estrutura simbólica proposta pelo inimigo. Em outro desvio da situação mais típica, não confronta sozinho o algoz, mas marcha acompanhado pelos demais posseiros.

Uma manobra recorrente do discurso oficial é tentar isolar no passado as injustiças e as suas consequências. O cinema é um dos vetores desse falseamento, mas uma análise atenta demonstra como até mesmo o faroeste, considerado o gênero mitificador por excelência, possui uma notável abertura para as tensões da História, mesmo quando trabalha para reprimi-las, especialmente quando trabalha para reprimi-las. Joseph H. Lewis, encenando um roteiro escrito (mas não assinado) por Dalton Trumbo[2], amplifica ao máximo essa potencialidade que não é, contudo, um corpo estranho nesse tipo de filme.

Finalizando, vale lembrar que se alguns conflitos históricos compõem diretamente o material da trama, outros subsistem enquanto conexões latentes com o mundo extra-ficcional. Reinado de Terror é assombrado por pelo menos dois espectros: o primeiro é que esse enredo de despossessão violenta se passa no Texas, anexado pelos EUA poucas décadas antes da narrativa, e um território indígena antes de integrar os dois estados coloniais. Não por acaso, a família mais vitimizada ao longo do filme é justamente mexicana. O segundo é a exploração do petróleo como estopim de um morticínio, algo que conecta o tempo diegético, o ano de produção de 1958 e, evidentemente, 2025, vide o horror que ronda a região equatoriana no momento em que escrevo este texto.
Agradecimentos a Pedro e Gabriela pela paciência.
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[1] Cabe a ressalva de que boa parte do que abordei ao longo do texto não é exclusividades dos faroestes na época da Hollywood Clássica, também podendo ser observadas em outros gêneros, mesmo que suas interações saturadas ocorram nos bangue-bangues.
[2] Em 58, Dalton Trumbo, já estava proscrito havia mais de dez anos pelo macarthismo. Àquela altura, Joseph H. Lewis já havia decidido se aposentar e somente assim pôde assumir a direção sem medo de repercussões para sua carreira. Tanto Nedrick Young quanto Sterling Hayden carregavam estigmas advindos da perseguição anticomunista.