BANDIDAGENS QUEER NO CINEMA CONTEMPORÂNEO

por Renato Trevizano dos Santos

Há no cinema mundial a tradição de retorno às narrativas de personagens marginais, párias, criminosas. Isso se dá tanto com a autoconsciência temática e estética explicitada no cinema moderno ao redor do mundo a partir dos anos 1940, quanto em narrativas mais clássicas. Tal esboço de uma delimitação histórica não pretende ignorar, contudo, complexidades e nuances; Há movimentos anteriores, como o expressionismo alemão, o cinema soviético e as vanguardas francesas dos anos 1920, entre outros, como formas também conscientes, autorreferentes, até mesmo com elaborações teóricas; ou mesmo toda a disputa tecnológica, epistemológica e de linguagem desde a invenção do cinematógrafo, no final do século XIX. Chegando até a gradual prevalência da narrativa clássica, já na década de 1910. Todos, em maior ou menor grau, com a presença de personagens e tramas criminais — no primeiro cinema temos filmes como A Subject for the Rogue’s Gallery (1904, A. E. Weed), curta que brinca com retratos policiais que começavam a se popularizar com a implementação da fotografia no século XIX ou o clássico O grande roubo do trem (The Great Train Robbery, 1903, Edwin S. Porter). Western, film noir ou Wuxia[1] muitos são os subgêneros e tendências centrados nas histórias de crimes. Ainda que possamos traçar essas referências anteriores, sempre passíveis de complexificação, a intenção deste texto não é trazer uma genealogia totalizante da questão; importanta a contextualização, destacar pontos significativos para reflexões, antes de atingir o cerne do recorte – o cinema queer contemporâneo.

Com a inflexão marcada pelo neorrealismo italiano nos anos 1940 em direção aos personagens párias e criminais, há filmes como Ladrões de bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) – por demais evidente nesse sentido, desde o título – ou mesmo com personagens envolvidas em “crimes de subversão”, como o pároco de Roma, cidade aberta (Roberto Rossellini, 1945) ou os guerrilheiros de Paisà (1946). Aqui, vemos o escancaramento da politização das relações entre cinema e criminalidades.

Seguem-se, então, os “cinemas novos”, de finais dos anos 1950 até os anos 1970. Grosso modo, com uma clara predileção pelos párias — da Nouvelle Vague com Godard, em Acossado (1960) e em Bando à parte (1964), O pequeno soldado (1963), Tempo de guerra (1963), etc; Truffaut, em Os incompreendidos (1959) e sem nos esquecermos de Jean-Pierre Melville, com o emblemático O samurai (1967). A nuberu bagu em filmes como Conto cruel da juventude (1960), de Nagisa Oshima, Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) de Shuji Terayama, A mulher inseto (1963) de Shohei Imamura, ou Tóquio violenta (1966) de Seijun Suzuki, etc. até o cinema novo alemão com O medo do goleiro diante do pênalti (1972), de Wim Wenders, O amor é mais frio que a morte (1969) de Rainer Werner Fassbinder, todos eles acompanham personagens criminosos; por vezes, como em Godard, Suzuki ou Fassbinder, fazem referência às histórias de gângsteres hollywoodianas, reinventando-as.

Podemos observar uma série de configurações no cinema queer contemporâneo que além de fugir a padrões normativos em termos morais, transgredindo tabus arraigados, não raro apresentam também contravenções à lei. Podemos reportar, para essa vertente queer, à herança de artistas LGBTQIA+ dos primórdios, extravasando até mesmo o campo do cinema, com manifestações na literatura, por exemplo, com Jean Genet (Diário de um ladrão, Nossa Senhora das Flores, Querelle), William Burroughs (Almoço nu, Junkie, Queer)[2], Allen Ginsberg (Howl), Oscar Wilde (O retrato de Dorian Gray), entre outros autores, alguns dos quais tiveram livros censurados e chegaram a enfrentar disputas em tribunais por conta do conteúdo de suas obras. No caso de Wilde, sua prisão, motivada por um relacionamento homossexual, crime na Inglaterra até os anos 1960, foi “comprovada”, em retrospecto, por passagens de seus livros, em especial de O retrato de Dorian Gray. Foi a primeira vez que o termo queer constou nos autos oficiais, para imputação de um crime. Antes disso, no contexto anglófono, cabia ao juízo popular a atribuição do “queer” a pessoas “estranhas” em termos de gênero e sexualidade, com a tradução literal de “aberrante”, “anormal”, “bizarro”, etc. O termo só seria ressignificado e apropriado pela comunidade queer a partir dos anos 1960, sendo um marco histórico nesse sentido a revolta de Stonewall (1969), em Nova York, em que frequentadores do bar Stonewall Inn, de público queer, foram reprimidos pela polícia e resistiram à violência, encabeçados por travestis negras e latinas, como Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, em um processo de culminância e inspiração para uma série de movimentos pró-direitos das pessoas LGBTQIA+ ao redor do mundo.

Se recuarmos mais no tempo, veremos outros casos paradigmáticos da criminalização de práticas (posteriormente convertidas em identidades, com a invenção da sexualidade) dissidentes. Desde o Brasil colonial, no século XVI, temos a condenação à morte por crime de “sodomia” (o primeiro condenado no Brasil foi Tibira, uma pessoa indígena morta na boca do canhão, depois convertida em São Tibira do Maranhão, por seu martírio inspirador da luta LGBTQIA+). No século XVIII, o Marquês de Sade é outra figura emblemática, também condenado por sodomia, entre outros crimes, e aprisionado na Bastilha.

No cinema queer moderno temos Pasolini, em que não só as transgressões internas ao dogma religioso se operam como também a transgressão de tabus que, não raro, envolvem paixões assassinas e sanguinárias – em Medeia (1969), há ritos sacrificiais, assassinato dos filhos; Édipo Rei (1967) envolve o assassinato do pai e a prática incestuosa com a mãe; em Pocilga (1969), o jovem do deserto come a carne do próprio pai e treme de felicidade; Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), adaptação de Sade, traz uma série de crimes sexuais com requintes de crueldad. Também Fassbinder precisa ser lembrado com seus personagens criminosos (por exemplo, no já mencionado O amor é mais frio que a morte, em que o bandido se apaixona por seu comparsa, ou mesmo O direito do mais forte à liberdade (1975), cheio de bichas interesseiras e safadas, e, claro, Querelle, assassino por natureza (1982), baseado no romance de Genet, que chegou a dirigir, sobre a experiência da prisão, o curta Um canto de amor em 1950). Vale dizer que, no mapeamento de “um certo old queer cinema” (Lucas Bettim, 2015), além do cinema moderno europeu, temos exemplares fundamentais no underground norte-americano, com Kenneth Anger (Scorpio Rising, Lucifer Rising), John Waters (Mondo Trasho, Pink Flamingos), Paul Morrissey e Andy Warhol (Flesh for Frankenstein, Blood for Dracula), entre outros, nos limites do erótico e do escatológico ou sanguinolento. São experiências que nos permitiriam de pronto endossar a declaração de Hugo Gomes: “finalmente histórias de gays trambiqueiras. ninguém mais aguenta só história de gay sofrendo. queremos mais gays assim, gays empinando de moto, gay dando tiro etc”. Este texto sobre bandidagens queer há de compilar, por certo, um corpus atrativo de gays trambiqueiras, entre outras cuir bandidas.

Com a “passagem pós-moderna” nas narrativas nos anos 1980, uma característica marcante, como destaca Fredric Jameson em “Remapping Taipei”, é o não julgamento moral dos personagens criminosos por parte dos narradores — eles não mais ecoam um possível código moral dos autores, são mais ambíguos, nuançados e opacos, autorreflexivos —, em tramas circunvoltas em mise-en-abyme. A ambiguidade moral se reconduz às formas dos filmes. Paradigmático dessa mudança é Terrorizers (1986), de Edward Yang, que nos ajudará a pensar o ambiente amoral da Tapei de finais do século XX, onde, mais à frente, vão se situar as narrativas de Tsai Ming-Liang, como veremos. A Taipei moderna, a partir dos anos 1970, é uma metrópole que combina suas raízes rurais – estradas de terra, vegetação abundante, galinhas pela rua, crenças e práticas religiosas ancestrais, com uma modernização acelerada, de urbanização mal planejada — erguem-se grandes edifícios espelhados, letreiros luminosos, outdoors, etc.

A expansão urbana traz, além de efeitos climáticos evidentes (como o afundamento de prédios no solo úmido) questões sociais relevantes, com a proliferação de sujeitos marginalizados. Crescendo a desigualdade social com a investida neoliberal, cresce a violência e a instabilidade, tudo o quanto pode ser visto no cinema de Edward Yang e de Hou Hsiao-hsien, mestres da primeira geração do cinema novo taiwanês, influência para Tsai e Apichatpong Weerasethakul.

Além de Taipei nos filmes de Tsai, observaremos, em Apichatpong Weerasethakul, a cidade de Bangkok (com uma menção honrosa ao cineasta Thunska Pansittivorakul, também tailandês). Apichatpong e Thunska transgridem, pelo cinema os rígidos dogmas da monarquia tailandesa. Voltando, então, o olhar para o ocidente (inescapável, incontornável: ocidente criminoso?), temos a figuração de Lisboa no cinema de João Pedro Rodrigues, e um vislumbre de Los Angeles em Bruce LaBruce. Por fim, de retorno ao Brasil, o fenômeno do cinema queer contemporâneo será observado desde São Paulo e Tiradentes. Por serem as cidades, em essência, que dão lugar aos corpos e a seus crimes, é por elas que nos guiamos ao longo deste percurso queer e estranho.

  1. Taipei

A filmografia de Tsai Ming-Liang oferece visões significativas de Taipei, capital de Taiwan, com seus fluxos modernizadores iniciados nos anos 1970, que atingem um ápice e início de derrocada já nos anos 1990 justamente quando Tsai inicia sua produção para cinema[3]. No imaginário dos espectadores de Tsai, Taipei é uma cidade sempre molhada — há apartamentos alagados, prédios que afundam no solo úmido, incapaz de suportar tanto peso (como se naufragassem…); há fluxos imparáveis para dentro ou para fora dos corpos (urina, água mineral, suco de melancia); banhos, ritos, chuva. A cidade naufragada dará lugar a personagens soçobrantes e por vezes soluçantes.

O primeiro longa-metragem de Tsai, Rebeldes do deus neon (1992), de pronto dá a ver essa metrópole de urbanidade mal planejada, em que prédios se alagam e afundam — afundamento este que encontrará a máxima dramaticidade narrativa em O buraco (1998). O protagonista dos filmes de Tsai, Xiao Kang (Lee Kang-sheng), seu alterego e “ator-fetiche”, em Rebeldes… nutre uma paixão platônica e obsessiva por um jovem criminoso, Ah Tze (Chen Chao-jung); este comete pequenos furtos junto ao parceiro Ah Ping (Jen Chang-bin), arrombando orelhões para coletar moedas, dinheiro que será gasto no fliperama, no bar, em pequenas diversões cotidianas. Eles roubam também o fliperama, retirando placas de jogos das máquinas, o que os faz experimentar a violência das gangues.

O Buraco, de Tsai Ming-Liang

A paixão de Xiao Kang também o leva a atos criminosos quase inofensivos: ele risca, rasga e pixa a moto de Ah Tze como forma de chamar sua atenção: realiza invasão de propriedade privada ao passar a madrugada no shopping, trancado após o fechamento do comércio, permanecendo secretamente para espionar Ah Wei. Xiao Kang também poderia ser acusado de blasfêmia, talvez? Afinal, sua mãe (Lu Hsiao-ling) acredita que ele seja a reencarnação do deus Nezha (o título original do filme, ⻘少年哪吒, significa, em tradução literal, “Adolescente Nezha”), como lhe informaram no templo. Sabendo disso, Xiao Kang faz um arremedo zombeteiro de um arrebatamento com o Deus, com gritos e movimentos espasmódicos que deixam sua mãe transtornada. A cena é interrompida pela brusquidão do pai (Miao Tien), que atira um chinelo no filho, de modo a encerrar sua pilhéria.

No filme seguinte, Vive l’amour (1994), Xiao Kang, novamente levado por um desejo obsessivo não correspondido, furta uma chave esquecida na fechadura de um apartamento vazio. Ele passa a ocupá-lo secretamente, como um fantasma, observando os encontros sexuais de eventuais ocupantes, Mei Lin (Yang Kuei-mei), corretora de imóveis que usa o apartamento para seus encontros, e Ah Jung (Chen Chao-jung), vendedor ambulante que se torna amante de Mei e objeto de desejo de Xiao Kang. Segue-se, ao longo da filmografia de Tsai, uma série de maiores ou menores contravenções por parte de Xiao Kang, que exerce diversas ocupações provisórias, de camelô em Que horas são aí? a ator pornô em O sabor da melancia (com a transição entre uma ocupação e outra no média-metragem A passarela se foi (2002)).

Ele se relaciona com um imigrante ilegal (Eu não quero dormir sozinho) e até mesmo com o próprio pai (O rio), transgredindo o tabu do incesto. Fran Martin refere-se a essas práticas como sintomas de uma “subjetividade pós-jia” (ou “pós-família”), em que os valores chineses tradicionais são frontalmente contestados. A questão sexual, a propósito, também é abordada centralmente em Adeus, Dragon Inn (2003), em que todo o espaço físico do cinema é, de certo modo, erotizado (lembrando-nos Barthes no texto “Ao sair do cinema”, em que todo o erotismo da experiência cinematográfica, do escuro da sala à proximidade entre as poltronas, é ressaltado) — especialmente o banheiro, locus privilegiado do cruising. Algo que, no Brasil de hoje, seria rapidamente chamado de “atentado ao pudor”, contra a moral e os bons costumes, má influência, possessão, certeza de condenação, violação das leis (de Deus, da natureza), um crime contra a natureza, contra a pureza, contra a beleza, a castidade, com risco de contaminação, de espalhamento viral, maldição, o medo de um planeta queer[4].

II. Bangkok

    Bangkok, como Taipei, ora só existe no meu imaginário — ambíguos aislamentos LGBTQIA+ friendly (mas por baixo dos panos a mesma condenação de sempre? Veremos.)

    A Bangkok de Apichatpong Weerasethakul é — também como a Taipei de Tsai, aliás — não dicotômica (isto é, estranha, queer — não binária?). Embora muitas análises da obra de Apichatpong insistam no lugar-comum do binário campo-cidade, arcaico-moderno, natural- tecnológico, selvagem-civilizado, animal-humano, etc. (cf. James Quandt, 2014), como se houvesse uma valoração moral de um passado rural idealizado, bem como das práticas religiosas animistas, qual uma pretensa alternativa espiritual “positiva” ao budismo de Estado — qualquer dicotomia cai por terra em face da complexidade mesma dos filmes.

    Afinal, como afirma o próprio Apichatpong, até mesmo o animismo pode ser utilizado com intuitos dominadores pela política oficial. Desde Eternamente sua (2002), as supostas leis invioláveis da ciência e da medicina já estão contaminadas pelas crenças e práticas populares — para o bem ou para o mal, e inclusive para bagunçar também esses “opostos”. É justamente o aspecto religioso que fez com que o cinema de Apichatpong fosse censurado oficialmente na Tailândia (não é essa uma forma de acusá-lo criminoso?).

    Em Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2010), ele mostra o personagem Tong (Sakda Kaewbuadee) — espécie de alterego e “ator-fetiche”, como Lee para Tsai —, um monge, despindo-se de seu manto alaranjado para tomar banho, o que bastou para as autoridades o considerarem “amoral”, criminal, desrespeitoso com a religião oficial. De modo similar, o close-up da ereção do personagem de Síndromes e um século também lhe rendeu censura. O “atentado ao pudor, à moral e aos bons costumes” opera insidiosamente, seja no Brasil, seja em Taiwan, seja na Tailândia. Este último, suposto “paraíso” para as cirurgias de redesignação sexual, é de pronto questionado na filmografia de Apichatpong, desde suas primeiras realizações, com As aventuras de Iron Pussy (2003), em que a figura da kathoey, especificidade identitária local, que no Brasil poderia fazer um paralelo com travestis e mulheres trans, grosso modo, encampa o avesso de todos os estereótipos, na performance camp da buceta de Ferro (Michael Shaowanasai). Tudo isso nos faz elucubrar que o turismo LGBTQIA+ friendly, visando ao chamado pink money, não dá conta de todas as sutis (ou nem tanto) coerções cotidianas.

    Por fim, há o também tailandês Thunska Pansittivorakul, que opera através do cinema, como Apichatpong, as suas contravenções oficiais. Em Terrorists (2011) — Terroristas, título que nos ecoará diretamente o Terrorizers de Edward Yang —,a primeira cartela traz uma lista de elementos proibidos nos filmes tailandeses pelo governo ditatorial monárquico. Thunska enumera as proibições com o intuito único de transgredi-las uma a uma. E é isso que veremos ao longo de Terrorists. Protestos políticos, violência de Estado, nudez, sexo explícito… Em seu longa-metragem anterior, Reincarnate, Thunska já havia sido censurado pelos elementos sexuais e religiosos em comunhão — implicando-se corporalmente em trocas íntimas a ponto de engravidar de seu amante e dar à luz nada menos que a câmera cinematográfica! Então, o cinema participa ativamente da criação de crimes de amor (contra a nação, contra a natureza, contra Deus[5]).

    III. Lisboa

      O protagonista de O fantasma (2000), Sérgio (Ricardo Meneses), inicia o filme como um coletor de lixo urbano em Lisboa, capital de Portugal. Sua ocupação oficial é por si só marginal, devido ao preconceito social, mas aos poucos ele sai desse lugar de legalidade e se entrega ao crime, também movido por uma paixão obsessiva, como vimos a respeito de Xiao Kang em Tsai. Aqui, no entanto, Sérgio vai além das tímidas investidas ou depredação de objetos como Xiao Kang: ele amordaça e arrasta pela rua o rapaz que é seu objeto de desejo, depois de tê-lo agredido e violentado.

      O despojamento das normas de convivência em sociedade aqui se dá em um nível radical como em Pasolini (lembremos o canibal do deserto em Pocilga, a perambulação pelo deserto em Teorema, destino reservado ao pai burguês); a abolição da própria humanidade é acompanhada em O fantasma por uma fusão erótica com o lixo — guardando algo de animal, selvagem, mas também sintético, plástico. Os dejetos humanos como limites do abjeto, aquilo que borra as fronteiras dentro-fora, desejo-repulsa, prazer-dor, vida-morte. Tal sentido erótico é agravado pela imagética do BDSM, com a máscara e as roupas pretas de látex, que tornam o sujeito anônimo e aproximam sua superfície corpórea da textura e aparência negra brilhante dos sacos de lixo — a sombra o torna uma fusão de breu na carroceria do caminhão, só visíveis seus olhos brilhantes de bicho (ou nem isso).

      O ornitólogo (2016), ainda que não se passe majoritariamente em Lisboa, mas nas florestas fronteiriças entre Portugal e Espanha, traz como protagonista Santo Antônio de Lisboa, justamente. Ele também é conhecido como Santo Antônio de Pádua, pois há uma disputa entre as duas cidades, de nascimento e de morte do santo, respectivamente, a respeito de seu nome.

      Seja como for, no filme de Rodrigues, o santo é figurado em diversas composições que reinventam a imagética cristã e católica, desde posições eróticas que ressignificam o martírio de São Sebastião, reinvestido pelo erotismo do shibari, tradição de amarração japonesa utilizada atualmente em práticas de BDSM; passando por referências à mitologia romana, com as caçadoras de Diana até a presença de tradições pagãs locais e demônios asiáticos (tengus). A mistura sensual de práticas tradicionais e figuras de diversas religiões poderia, em O ornitólogo, assomar profanadora, e de fato assoma, nos termos agambenianos: a profanação como uma atualização do mito, com a devolução ao uso dos corpos vivos daquilo que foi apartado pelo dogma. Coroa a tudo uma relação de amor com Jesus; e, por fim, uma ferida penetrada em close- up após um assassinato… A Incredulidade de São Tomé (1601–1602), Caravaggio, reinventado por Derek Jarman (também Sebastiane, que ressalta o homoerotismo do mito de São Sebastião): novas circunvoluções da trama espelhada de crimes em mise-en-abyme.

      O Ornitólogo (2016) de João Pedro Rodrigues

      IV. Los Angeles

        Em LA Zombie (2010), François Sagat interpreta um personagem marginal que também caminha entre os sacos de lixo, com roupas rasgadas, um carrinho de supermercado, caracterizado de forma algo caricata como um morador de rua. Sua estranheza, contudo, reside no fato de ele ser um zumbi, que tem a capacidade de, ao transar com homens mortos (violentamente, diga-se de passagem), devolver-lhes a vida. Seguem-se a assassinatos sangrentos, acidentes de carro e outras mortes extremas (mas também camp), cenas de sexo explícito sanguinolentas, em que as convenções do pornô industrial (como o close da penetração, o ritmo acelerado, a teleologia do gozo, etc.) são embebidas em sangue, tensionando mais uma vez o desejo e a repulsa — como só o erotismo em si é capaz de fazer, recorda-nos Bataille.

        V. São Paulo

        Pude conhecer muitos filmes brasileiros contemporâneos em São Paulo especialmente no Cinusp em mostras como a “Novíssimo Cinema Brasileiro” e ainda mais nos tempos de curadoria e programação. Muitas vezes me perguntava, como no meme, onde estavam as gays bandidas, que dão tiro pro alto e empinam de moto, cansado das gays sofredoras.! Mas aos poucos elas foram surgindo (quer dizer, eu as fui conhecendo, elas foram aparecendo, fantasmagóricas, monstruosas e bestiais): sobretudo aquelas safadas, que atentam contra o pudor, a moral e os bons costumes (muitas delas, quase que principalmente pela via do sexo, pois ainda não aprendemos com Pasolini suficientemente bem que o sexo pelo sexo é facilmente capturado e que a suposta “revolução sexual” fracassou antes de começar — o que temos hoje, senão (ainda) os zumbis de LaBruce, os fantasmas de Tsai, os monstros de Apichatpong, as bestas santas de Rodrigues…?

        O Brasil também nos oferece exemplares de um horror pornô queer: Nova Dubai (2014) de Gustavo Vinagre é um bom caso. Em meio às referências sanguinolentas de filmes de terror, cenas de sexo explícito sucedem-se, afrontando a família tradicional e os estereótipos de masculinidade — o trabalhador braçal, musculoso, da construção civil (Hugo Guimarães); o pai (Herman Barck) do amigo/ficante/namorado (Bruno D’Ugo), o que quer que seja — tudo flui para…A especulação imobiliária (crime maior destes tempos?) projeta fantasmas de prédios vazios sobre o horizonte de árvores, e é num apartamento branco, asséptico, que se desenrola mais uma cena de sexo, com o personagem de um corretor de imóveis (Caetano Gotardo) dominado em um ménage à trois, implorando por pica.

        VI. Tiradentes

        Querido diário,

        Eu tentei fugir, mas fui assumindo progressivamente um tom subjetivo, confessional, umbilical. Vai ver é uma crescente influência do conteúdo na forma. O primeiro filme que vi na Mostra de Cinema de Tiradentes de 2025 foi Parque de diversões (Ricardo Alves Jr., 2024): um “filme de sexo”, nas palavras do diretor, e não um filme sobre sexo, como fizeram questão de ressaltar — à moda de trigger warning? Ou uma pretensa distinção forma-conteúdo contrassensual?

        Envolver a nudez com filtros, flores artificiais, luzes saturadas, tableaux-vivants, quando bem realizado, resulta belo: Pink Narcissus, Nus masculins. Eu, de minha parte, poderia falar sobre o amor, a paixão, o desejo, e também sobre o sexo dos cães pelas ruas de Tiradentes — o quanto vi e vivi. Mas parece que ainda há experiências cinematográficas que podem espelhar, borrar, confrontar, até ajudar a ressignificar outras. Assim foi Um minuto parece uma eternidade para quem está sofrendo (Fábio Rogério e Wesley Pereira Castro, 2025), que me ajudou a desessencializar uma série de pressupostos que se vinham cristalizando, como se a relação umbilical do filme com seu realizador (por exemplo, em Uma montanha em movimento, de Caetano Gotardo, o mesmo que outrora implorara por pica ao interpretar um corretor de imóveis em Nova Dubai) fosse meramente (moralmente, até) “negativa”; ou o gesto de falar de cinema, perfilar referências, expor sua cinefilia por meio de DVDs e livros, por exemplo (tanto em Uma montanha em movimento quanto em Um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo) fosse por si só “pedante”. Então, tudo se nuança.

        O crime recorrente desse cinema brasileiro será sempre o atentado ao pudor, falar de si, mostrar o pênis como um ato revolucionário, teimar e insistir em falar de amor? Penso que, especificamente em relação à Mostra de Tiradentes de 2025, ainda estamos vendo muitos “filmes de pandemia”, resultados fílmicos de um período de isolamento psicologicamente perturbado. São filmes isolados, e o seu crime não seria acenar para outras possibilidades de encontro? Tudo se nuança: as relações interpessoais, que se evidenciam em direções diversas — da conveniência ao acanhamento à efusividade ao esgotamento à euforia à ansiedade e de volta ao encantamento, a um certo deslumbre, à inocência…?

        Em Baby (Marcelo Caetano, 2024), que foi exibido na Mostra como parte da homenagem à atriz Bruna Linzmeyer, a inocência corrompida teima em retornar em pequenos gestos de carinho ou explícito desejo em ambiente marginal, criminal: garotos de programa e seu bonde queer batem carteiras em um cinema pornô no centro de São Paulo.

        O desconforto que parte do público declara testemunhar ao ver tantos paus em cena — será apenas um impulso conservador, ou pode também ser pensado transgressivamente, expondo uma necessidade de escuta? Trata-se do lugar-comum condensado do “cinema brasileiro só tem sacanagem” com “LGBTs são sexualmente promíscuos”? Mas pode apontar também para a abertura a outras formas de ativar e cativar sensibilidades?

        Enfim, um texto de perguntas: pois são só o que há sobre este presente. Em Resumo da ópera (Honório Felix e Breno Lacerda, 2025), com linguagem opaca, borrada, a crítica cuir afia suas garras sobre a história brasileira recente — nossa história do presente. Será um crime dizer tudo assim tão oblíqua e, ao mesmo tempo, frontalmente?

        Nem Deus é tão justo quanto seus jeans me ajudou a encerrar um percurso queer, que continuará pela Serra de São José, pela Trilha do Carteiro, lá onde foi morto um Inconfidente que transportava as mensagens insurgentes, onde a água borbulha sobre pedras cor de Coca-Cola, lá onde mais uma vez se cometerão crimes de atentado, tão caros.

        *

        1. Gênero literário e cinematográfico chinês que envolve artes marciais e elementos fantásticos, similar às “lutas de capa e espada” do contexto europeu.

        2. Burroughs, embora tivesse publicado livros transgressores sobre experiências pessoais com o vício em heroína, encontra maior barreira ao abordar sua sexualidade, em Queer, que só foi publicado em 1985, mais de três décadas após ter sido escrito. Pasolini também enfrentou desafios de publicações nesse sentido, tendo suas primeiras novelas autobiográficas sobre a descoberta sexual, Amado meu precedido de Atos impuros, escritas nos anos 1940, publicadas apenas nos anos 1980.

        3. Tsai havia realizado filmes para a televisão no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 como Deem-me uma casa e Garotos, que antecipam muitas das questões trabalhadas ao longo de toda a sua filmografia.

        4. Fear of a Queer Planet de Michael Warner (1993), proliferação pelos espaços protegidos da vida comum, anti-família (pós-Jia), anti-pátria (Taiwan não é sinônimo de China?!?!), promiscuidade, sodomia, safadeza, etc.

        5. Que poderiam ser também: pela nação, pela natureza, por Deus.

        FacebookTwitter