TAQUICRAFIA ESPIRITUAL: A PALAVRA CARTORIAL DE KAFKA TRANSCRITA PELO CINEMA BURLESCO DE STRAUB E HUILLET EM “RELAÇÕES DE CLASSE”

Por Luiz Soares Jr.

“Se há uma coisa que pode ser encontrada na teologia chamada judaica em Kafka é sua virtual ausência do conceito de Natureza; em certo sentido não existe Natureza na Gêneses, já que o mundo é criado para o homem”. ”

Günther Anders, Kafka pró e contra

“Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito…Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta…acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau.”

Conde de Lautréaumont, Cantos de Maldoror

Em seu Le champ aveugle, Pascal Bonitzer tem uma intuição de vertiginosa profundidade genealógica, quando nos diz que o cinema começou escatológico (no burlesco: Fatty Arbuckle , Sennet) e terminou frígido, com Marnie de Hitchcock: esta História feito cristal teve seus paradigmas, suas exceções, seus heresiarcas e asseclas, mas no Relações de classe (adaptação do América de Kafka pelo casal Straub e Huillet) ela adquire, para nos intrigar e enlevar de fascínio, uma mecânica muito bem torneada, oleada, escorreita e lisa, mas em todo caso uma mecânica: na citação intertextual do encontro de Karl com o policial saído diretamente de um Chaplin da Mutual, temos a sensação de que algo de muito antigo e nobre acedeu novamente à profundidade de campo de uma tela de cinema, e nos convoca para indagar de suas origens; o policial corre, apita, corre de novo (atrás de Karl, que por sua vez foge impromptu), e acaba por perdê-lo para um cubículo estreito e vertical onde Delamarche espera o rapaz para tapar-lhe a boca; em um découpage causalista de soberana potência demonstrativa (ou deveria dizer “monstrativa”, forçando os limites da língua para falar da fulgurância do gênio?), um plano para cada ação e uma ação em sequência da outra, Straub e Huillet se utilizam da diligência mecânica do burlesco para nos falar de corpos autômatos, da tragicidade do autômato espiritual que recupera o Kafka cartorial de seus últimos romances para se apresentar numa arte materialista, onde figurar um corpo que se precipita espaço abaixo é uma questão seminal.

Um moto perpétuo de engrenagem que adquiriu autonomia, uma inconsciência automática, um encadeamento de causas e de efeitos que se implicam reciprocamente são os comandos desta sequência fabulosa, sobretudo se a pensarmos como uma exceção, visto que ao longo de todo o filme o expressionismo reivindicado por Straub e Huillet se nutriu de um classicismo muito à americana, tamisado de luz e sombras, découpage elementarmente arquiteturado (campo, contracampo, entradas e saídas de campo, raccord diretivo do olhar, em suma, uma transparência elementar, que só se recorda da câmera para um sibilante flerte com o extracampo do texto onipresente: Kafka, Mallarmé, Pavese, Corneille), mas de um espaço coordenado pela vontade de potência de um escriturário de cartório; Straub, numa entrevista a Positif, nos falava de sua nostalgia pelo grão do som dos primeiros falados, de Lang e Féjos e ao Man to man de Dwan, e aqui como em seus melhores ele sabe destilar a pregnância de um da-sein (ser aí) que poucos tardios souberam reencontrar (sim, pois houve um Era uma vez na sua história onde o cinema, com Lumière e Secondo de Chomon, foi “aí”; as mediações todas vieram depois, e  paulatinamente), mas este ser-aí só o “é” se o pensamos como o atalho a posteriori para uma consumação da história do cinema clássico e expressionista alemão (este encontrou na América uma suprassunção dialética de sua atmosfera, seus personagens assombrados e seus cortes abruptos do inconsciente do personagem para o cenário de cartolina pintada onde este se exteriorizava, enfatizando-se o fato nada fático de que a América castrou o stimmung histérico do expressionismo e ficou apenas com o esqueleto ou estrutura de seu cenário mental e objetivo, como os dois últimos Lang tão bem ilustraram); o “ser aí” do casal Straub e Huillet, porém, veio ao final de uma História, e assim reencontrou seu começo, mas o preço a pagar foi um diálogo de sombras urdido pelo agenciamento, ativo mas minimalista, das sublimes mediações de majoritária História aurática do cinema, arte é bom lembrar herdeira do extracampo da pintura e (um tanto menos) do teatro; mas como Straub e Huillet, adaptando um autor de escritura cartorial como Kafka, vão acabar por reencontrar a presença suntuosa dos primórdios do cinema falado? Em que medida a palavra, avara de enfeites mas não de metáforas, de Kafka vai servir de uma plataforma inexcedível para esta adaptação segundo a letra e o espírito de sua novela americana?

Em uma carta a seu amigo e executor testamentário Max Brod, Kafka, aqui um rabino niilista, escrevia: “Há um ponto além do qual não há a possibilidade de retorno; é este ponto que devemos atingir”; o ponto teleologicamente orientado para a tragicidade do no return, no casal Straub e Huillet , é precisamente este aí: o murmúrio de ramagens das árvores, as pegadas do homem no espaço, sua respiração, o trateio de sua fala entrecortada de saliva e ar; e qual palavra senão a protocolarmente neutra de Kafka ( os franceses diriam: a palavra do on, do pronome indeterminado que envolve o nós e o eles) é a necessária para ressentirmos, como uma mosca na teia da aranha ou de um corpo no furacão, a resistência que os elementos, naturais e humanos, opõem ao sentido ideológico-metafísico, para a perversa preeminência da Ideia sobre o ser? Como bem pensava Daney, a resistência dos Straub é da ordem da rocha: um túmulo para o olho, é como ele diz mais precisamente; tudo o que é resiste à cooptação pela ideologia, pelo significante, pela alienação geral do homem decaído do cotidiano (Heidegger), pela metafísica da subjetividade, etc, e se Kafka é paradigmático desta condição, mais ontológica que política (mas também política, ambas devidamente coordenadas por uma reflexão imanentista) é porque o seu texto mata-mosca só permite filtrar aquilo que resiste igualmente ao sentido fácil e frívolo, à flor da pele, à perigosa sedução pela prosa engalanada do beau siècle, que os Straubs exorcizaram com seu decoreba de cooper de dicção cosmopolita na adaptação do Corneille de Othon: se os Straub o escolheram, antes de tudo é porque, autores austeramente quakers, as sentenças lacunares do autor tcheco (como Lucrécio, como Mallarmé, citados expressamente por Straub em entrevistas e corpo a corpo com a redação dos Cahiers) permitem a incrustação, a  captura, a cooptação do essencial, um exorcismo da superfície e do anódino em nome de uma profundeza dialogal com o passado, da história da literatura, do cinema ou do Talmude, de sua fixação no coração da presença filmada: elas exigem ser preenchidas, como o fora de campo do cinema tardio straubiano, pelas interjeições expletivas, índex de atenção humilíssima aprendidas pelo espectador ao cabo do filme-Lição;  no caso do casal hermeneuta, com tudo aquilo que “é aí”/da-sein ao alcance da mão do homem e transcendente ao seu domínio programático, prático-inerte; mas também porque, em corredores ensombrecidos, Straub pode designar a presença/ausente do expressionismo metafísico de Night of the demon de Tourneur ou Sétima vítima de Lewton/Robson, por exemplo: ao puxar para si o classicismo americano como metro de toda figuração, o casal também está se assenhorando do expressionismo, cujo maior legado foram as obras em chiaroscuro e unheimlish da América profunda; este aprendizado de centrar toda a atenção naquilo que resiste se faz pedagogicamente no Relações de classe, como num bildgsroman filosófico, paradigma Wilhelm Meister e Fenomenologia do espírito: cada encontro ( com o foguista, com Delamarche, com o garoto do ascensor, com Brunelda, etc) vai permitindo a Karl ascender a um grau superior de know how sobre o que o cerca, sobre o  fenômeno e a ética e a necessidade insofismável de achar uma ponte entre eles: esta operação, como num espelho convexo de epifanias fulminantes de alteridade, também tem por objeto a percepção do espectador, é claro, porque sem isso ainda seríamos clássicos; é a neutralidade háptica do mundo que resiste, a heterogeneidade do sintagma e do plano que persiste resistindo ( Daney ainda: “(…) disjunção, divisão (…) o olhar a e a voz, a voz e sua matéria, seu grão); à montagem ideologizada, dicotômica significante/significado, superestrutural dos russos o incipiente cinema falado americano resistiu com o grão da fala, do rugido do vento, da burilação do espaço pelos corpos: ao terrorismo dos constructos russos, o cinema falado resistiu, como as sentenças lacunares e protocolares de Kafka resistem (modelo das fábulas e ditados do Talmude judaico, a lei oral que permitiu a sobrevivência da doutrina hermeneuta do rabino Hilel) ao senso-comum, ao prático inerte da literatura de consumo rápido ( e portanto também ao capitalismo, sistema que a endossou porque ganha um usufruto infinitamente sórdido com ela); os Straub, sem o declarar, fizeram outro filme de inspiração rabínico/materialista (e qual grande cineasta não cerziria o Segredo segundo o anátema da matéria, daquilo que ainda resiste ao filisteísmo doutrinário?), à semelhança do Fortini cani e do Moisés e arão: Kafka era um sábio talmudista laico que, como na balada de Wilde, não ousava dizer seu nome, e foi incólume aos ventos do Sul- um tanto como na revolução dos passos de pomba nietzschiana- que ele nos deixou algumas das páginas mais belas sobre o Totalmente Outro, agora em chave imanentista/burocrática, do século 20. 

Ao elegerem Franz Kafka como o estilista menos estilista de todos ( aquele para quem o estilo é antes de tudo um problema, uma questão: como o teorema de Gödel, sempre infenso à resolução do raciocínio fiável), o homem da prosa plana e do sintagma elíptico, o casal Straub e Huillet, fiéis à letra e o espírito do rapazote burocrata de Praga, elevaram-no à condição de clássico que um filme ruim como o de Orson Welles lhe negara de forma brutal; e para terminar: não tenho como capturar neste texto o tempo intempestivo de Relações de classe, como capturo seu espaço anfractuoso e saturado de luz, mas revejam e reparem que Huillet, montadora do casal, sempre nos dá um tempo maior antes e depois no plano ocupado “há pouco” por uma pessoa ou um objeto ( de pronto: a valise de Karl, a estátua que abre o filme e a estátua da Liberdade, etc); é seu jeito de resistir mais metafísico: um pouco de tempo em estado puro antes e depois, um infinito tempo incrustado num plano de densidade inquebrantável; ao cinema terrívelmente ruim que hoje nos bate à porta vindo de todas as partes do mundo, a resistência ofertada por Kafka, Cézanne, do casal Straub ( como também de excelsos cineastas como Apichatpong, Costa, Claire Denis, Stanley Kwan, Eugène Green, Kiyoshi Kurosawa e Rousseau) é um alento, uma inspiração e a realização de uma Promessa para a cinefilia penitente.

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