Por Carolina Azevedo
Nas críticas que atravessaram o Atlântico em junho de 1957, a Santa Joana de Otto Preminger apareceu como “um triste fracasso” (The Guardian), “uma decepção” (Le Monde) e nem de perto uma experiência tão memorável (The New York Times) quanto as apaixonadas versões de Dreyer e Flemming do processo de Joana d’Arc. A crítica fica ainda mais hostil quando decide comparar o filme de Preminger com a peça de Bernard Shaw, em que se baseia. Que direito tinha Preminger de transformar uma tragédia de mais de três horas de duração em um filme que pouco passa de uma hora e meia – e, pior ainda, escolhendo, para interpretar a divindade guerreira, uma adolescente inexperiente?
Ao colocar a jovem Jean Seberg em um papel anteriormente interpretado pela robustez dramática de Maria Falconetti e de Ingrid Bergman, Preminger incomodou a crítica, sobretudo na França, onde Jean de Baroncelli escreveu: “nenhuma chama arde nela. Ela não é Joana d’Arc. Sua altura e constituição física não têm nada a ver com isso. Ludmilla Pitoëff era ainda mais frágil do que Jean Seberg quando interpretava a heroína de Shaw. No entanto, ela dava a impressão de ser habitada por uma força sobre-humana. A graça a transfigurava. Nada transfigura Jean Seberg.”
É curioso que a crítica tenha contestado tanto a interpretação de Seberg, pois foi ela a escolhida pelo diretor entre as mais de 18.000 garotas que Preminger teria testado para o papel, uma busca que fez com que a equipe de seleção de elenco viajasse entre Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Irlanda e Suécia em busca da garota ideal. Passados mais de cinquenta anos e outras dezenas de filmagens do processo de Joana d’Arc – dentre elas a terrivelmente sóbria versão de Robert Bresson – é difícil entender o que os críticos viram de tão ruim naquela performance, que, mesmo menos dramática, não deixava de ser comovente e convincente.
O filme de Preminger sofreu muito com a insistência da comparação entre original – no caso, a peça de Shaw – e adaptação. Jonathan Rosenbaum define Santa Joana como o único “filme de arte” do diretor, dado o tom intelectual ditado pelos diálogos de Shaw. Mas a ingenuidade da jovem protagonista e a comicidade do personagem do Dauphin (Richard Widmark), somados à forma dinâmica com que a épica corre em sua curta duração, intercalada às imagens fantasmagóricas e oníricas – que, em sua modestidade, parecem mais reais do que as cenas da tragédia que ela narra – dão ao filme um caráter não menos popular que qualquer outro produzido pela Hollywood da década de 1950.
Sobretudo durante sua primeira metade, Santa Joana segue uma tradição do cinema cômico americano que André Bazin defende ser o mais “teatral” de todos – cômico em linguagem e situação. Mas a teatralidade do filme foi lida em sua chave negativa, enfatizando a sensibilidade pretensiosa e reacionária da heresia do que a crítica chamava de “teatro filmado”. Talvez tenha sido o preconceito de uma crítica crente de que o cinema é uma arte maior – e que, portanto, não deveria submeter-se às leis de outra arte, menor e ultrapassada, como o teatro – que gerou a reação que tomou conta dos jornais em 1957. Tudo o que a obra de Preminger faz, no entanto, condiz com a solução de Bazin em relação à adaptação teatral: “compreender que não se trata de fazer passar para a tela o elemento dramático – intermutável de uma arte para a outra – de uma obra teatral, e sim, ao contrário, a teatralidade do drama.”
Ao invés de um filme longo dividido em apenas seis cenas e um epílogo, como ditava o texto de Shaw, Preminger toma a força dramática de seus diálogos e a traduz para a linguagem cinematográfica em toda a sua potência. Tomando da pintura o artifício da descentralização da imagem e adicionando o dispositivo cinematográfico da montagem para fragmentar a narrativa, o texto de Shaw se transforma em cinema. Emprestando as palavras de Bazin, Santa Joana é “uma luz brilhante projetada sobre a poesia dramática” quando a lente enquadra o rosto de Seberg, que volta seu olhar para o céu e, tomada pela emoção, faz esquecer todos os religiosos que, no segundo plano, a condenam.
A Santa Joana de Otto Preminger pode ter sido condenada pelos críticos de seu tempo, mas ainda tem chance de salvação pelas revisões de um público menos reacionário às adaptações e que reconheça do gênio de Jean Seberg.
O God that madest this beautiful earth,
when will it be ready to accept thy saints? How long, O Lord, how long?
Joana d’Arc em Santa Joana, de Bernard Shaw