Um homem anônimo mira sua câmera para o chão, nos mostrando uma mamadeira erótica que tem em suas mãos. Quando o narrador retira a tampa desse objeto – segundo ele, disponível nas creches públicas – podemos ver o formato do bico semelhante a um pênis e dois testículos. Os responsáveis são rapidamente nomeados, Haddad, Lula, PT estão em um conluio que, para combater a homofobia, tem levado esses materiais para as crianças. Votar em Bolsonaro, portanto, é a ação para que nossos filhos continuem sendo “homens e mulheres”. O vídeo foi divulgado em meio às campanhas eleitorais de 2018 e tinha uma utilidade na disputa contra Fernando Haddad, adversário na disputa presidencial daquele ano. Sendo um dos mais populares, o vídeo também foi um dos que mais efetivamente entrou no campo de recepção do cômico, sendo desmentido pelos portais de notícias e de checagem de fatos e se tornando um dos memes definidores daquelas eleições.
No entanto, desmerecer pela via do cômico esse vídeo e tantos outros, ora menos ligados ao bolsonarismo mas partícipes daquele período, oculta sua relevância para o debate do conservadorismo social extremado que tornou o Kit Gay uma eficiente ferramenta política da segunda década do século XXI. A liberdade com que um eleitor bolsonarista se imbui de se utilizar de um objeto vendido em sexshops para produzir um vídeo de denúncia reiterando os mesmos discursos que Bolsonaro e seus filhos originalmente apresentaram em seus blogs, canais no YouTube, grupos de Telegram e WhatsApp aponta a importância dos eleitores na solidificação dessa visão de mundo propaganda pelo político e seus apoiadores.
Como evidência, a mamadeira de piroca opera sem oferecer contexto apurado, sem fazer referência documental a programas de inclusão social boicotados por Bolsonaro e as bancadas conservadoras, e rapidamente atribuindo a confusão cognitiva que pode surgir ao inimigo comum da esquerda, do PT e, afinal, Fernando Haddad e Lula. A tomada em mãos da câmera para delirar uma situação que parece tão absurda, tamanha a impossibilidade da sugestão de mamadeiras eróticas para as creches públicas, é certamente um dos marcos que exemplifica a que atitudes uma consciência tomada pelo pânico moral pode recorrer. Seria uma consciência ingênua, se não fosse perigosamente capaz de atiçar e instrumentalizar os ânimos no Brasil atual.
Se o que aqui se sugere é uma certa seriedade diante do absurdo e cômico, não é porque tais cenas não deixem de despertar risadas, entre o riso e o choro, mas porque são eficazes em dar longevidade a um vocabulário de caráter operativo, que mobiliza as redes sociais, engaja interlocutores na especulação sobre do que se trata, o que fazer desse conteúdo, na busca de responsáveis, do desmascaramento de sua veracidade ou falsidade, no absurdo de sua existência e outras formas de engajamento.
Cesarino afirma que o Kit Gay circula como “puro significante (no sentido de Sausurre), a ponto de perder qualquer conexão com um referente concreto.” (2019, p. 102). Cronologicamente os referentes concretos poderiam se tratar dos textos institucionais do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBTs e do Escola sem Homofobia, dos materiais produzidos por essas iniciativas quer sejam audiovisuais, boletins educacionais (chamados de Boleshs), ou os próprios debates institucionais que levaram a sua elaboração e deliberação na esfera pública. Originalmente combatidos pelos Bolsonaro em seu conluio com a banda evangélica, é evidente que o Kit Gay perde contato com eles na medida que é apropriado nas redes, culminando em produções como a mamadeira de piroca.
No decorrer dos mais de 25 vídeos disponíveis no canal de Jair Bolsonaro no YouTube que fazem referência ao Kit Gay em seu título, os materiais utilizados pelo então deputado federal para alimentar sua rede conspiratória ganham cada vez maior dispersão, indo de uma disputa suja contra os avanços das bancadas progressistas para os moldes de uma guerra cultural. “O nome do filme é importante” diz Bolsonaro em um de seus pronunciamentos, ciente de que sua performance tem um quê de invenção, e que se trata de um procedimento de edição, recontextualizando diversos objetos do mundo dentro de uma mesma narrativa.
Ao mesmo tempo que há uma perda do objeto concreto que está sendo atacado, o vocabulário apresenta uma grande consistência. O eixo que articula a “flutuação” do Kit Gay através das redes está em um vocabulário obsceno produtor de choque e mobilização pela sua vocação de despertar imagens – ora visuais, ora mentais – que ferem a sensibilidade do cidadão de bem. Por trás de uma série de imagens virais e escândalos midiáticos, subjaz uma cadeia de imagens mais impactantes, que sequer se manifestam visualmente, mas rondam o imaginário no cerne do bolsonarismo.
A pedofilia e a criança como “outro desigual”
Uma breve sondagem pelo canal de Jair Bolsonaro no YouTube é suficiente para constatar a reincidência de um vocabulário obsceno em seu discurso. Qualificações como “imoralidade”, “promove o homossexualismo e a promiscuidade”, “filmetes pornográfico-infantil”, “desconstrução da heteronormatividade”, “uma porta escancarada para a pedofilia”, “vergonha”, “bacanal”, “estímulo ao homossexualismo infantil e a pedofilia”, “falta de respeito pela família”, “apoia a pedofilia”, “bolsa gay” e “primeiro emprego gay”são usadas a esmo. Tais frases embaralham os sentidos entre diferentes instâncias: do obsceno, do desvio da conduta e do desejo sexual, e da instituição de uma minoria – entendida como anormal – privilegiada.
A forma como Bolsonaro qualifica os materiais que enquadra como Kit Gay revela uma aspiração do político a indignar seus ouvintes, lançando mão de palavras como ferramentas de choque, instaurando a atmosfera de ameaça. Denotam uma espécie de imaginação do imoral, qualificado com derrogações que inferiorizam os materiais. O “pornográfico” está aqui próximo do sujo e do vergonhoso, como estigma de algo que é da ordem do indesejável e impensável para o “cidadão de bem”. Por trás desse vocabulário amplo, duas imagens são centrais para a eficácia do Kit Gay: a do pedófilo e a da criança. O espectro dessas duas figuras paira por todos os demais aspectos do Kit Gay como imagens-síntese, capazes de abarcar todos os receios dos espectadores capturados por essa teoria conspiratória.
A pedofilia, por sua vez, é um fenômeno amplamente utilizado no discurso da extrema-direita para muito além do bolsonarismo. Em verdade, Bolsonaro parece ter se inspirado na retórica de um de seus gurus, Olavo de Carvalho, que pelo menos desde o início do século alarmava
Isso eu tô dizendo pra vocês há anos, há anos… A legalização da pedofilia é apenas uma questão de tempo no Brasil. Isso vai acontecer fatalmente. Preste atenção, quando eu digo pra você que o negócio é fatal é porque eu examinei, pensei, estudei, fiz as contas e vi que não tem jeito de ser de outra maneira. […] Preste atenção, anos atrás, uns 6, 7, acho que 10 anos atrás, eu escrevi: depois de o movimento gay adquirir autoridade e se tornar fonte de direitos, fonte da lei – o que já é uma coisa absurda – o passo seguinte seria legalizar a pedofilia.
Olavo não foi o único a estabelecer essa conexão. Damares Alves, ex-ministra da mulher e senadora nas eleições de 2022, denunciou a série Lindinhas da Netflix como “pornografia infantil”. Em tweet diante da vitória de Bolsonaro em 2018, ela escrevia
Essa é uma nova era! Pedófilos, consumidores de pornografia infantil, traficantes e exploradores de crianças: acabou pra vocês! Bolsonaro é presidente e Moro é Ministro da Justiça!! Nenhuma criança mais vai chorar nessa nação. Não mediremos esforços para amá- las e protegê-las!
Damares já construiu em seus cultos imagens de crianças de dentes quebrados para melhor performar sexo oral, e crianças alimentadas com alimentos pastosos para performar sexo anal. Tais cenas não estão em nada relacionadas a dados oficiais de investigações policiais, estando antes presentes em narrativas conspiratórias de grupos como o QAnon. Olavo e Damares exemplificam a aliança conservadora de braços católicos e evangélicos da extrema-direita e sua predileção pelo sensacionalismo e conspiração envolvendo abuso sexual de menores de idade.
Uma grande parte do sucesso do Kit Gay pode ser atribuído a capacidade de síntese bolsonarista, de se apropriar de discursos e imagens outrora utilizadas por outras vertentes do conservadorismo e da direita e concentrá-los através de um porta voz carismático, capaz de abarcar uma maior quantidade de espectadores em seu espetáculo paranoico. O Kit Gay dá nome a uma conspiração que o precede, de conluio entre as forças progressistas de avanço das pautas de inclusão LGBTQIA+ no tecido social e a legalização da pedofilia. A figura do pedófilo em si, no entanto, permanece difusa.
Afinal, seria o professor ou professora que iniciaria os alunos no material do Kit Anti-homofobia o pedófilo? Seria o pedófilo, fora da escola, um beneficiado pela educação sexual “precoce” das crianças? A pedofilia nunca é um fenômeno esmiuçado por Bolsonaro em sua fala, mas sempre citado. Nunca se explica exatamente de onde vem o adulto que expressa esse tipo de comportamento e traumatiza as crianças que são defendidas por ele na câmara dos deputados – do mesmo modo, quem seriam os pedófilos que traficam crianças nas fronteiras do Brasil de Damares e o que eles têm a ver efetivamente com o status quo institucional? Estariam os deputados estaduais e federais de identidades LGBTQIA+ ou defensores de suas causas ocultando suas facetas pedófilas? Perguntas que não encontram resposta da boca desses ideólogos, mas que não impedem uma disseminação de seus discursos.
A associação entre pedofilia e a diversidade sexo-gênero remete ao que Chun (2006, p. 97) identifica como o uso estratégico da pedofilia como a principal forma de sexualidade útil para produzir e incitar métodos de controle, entendidos nesse contexto como essa mobilização dos indignados que acreditam agir em prol de uma boa causa a partir de seu pânico moral. O risco da pedofilia justifica uma postura de medo, paranoia e vigilância com a qual Bolsonaro e seus apoiadores se imbuem. A homossexualidade aqui significa, como para Chun, uma forma de abdução infantil estimulada pelas escolas públicas. A pedofilia é percebida como parte de um plano maior de cooptação das crianças, sendo a introdução da homossexualidade no ensino público um primeiro passo ideológico.
Se os LGBTQIA+ são apontados, sob o signo da pedofilia e do comunismo, como inimigos absolutos, a criança é apontada como a vítima de um processo de penetração ideológica e suas figuras estão espalhadas pelo material do Kit Gay ora como exemplo dos efeitos corrompedores desse suposto processo – as “crianças viadas” – ora como um modelo, ideal da inocência que assegura a perpetuação dos valores familiares como pilares da nação – as crianças militarizadas ou reproduzindo discursos conservadores prontos. Dentro do léxico bolsonarista, em ambos os casos o corpo infantil é reconfigurado. A ele é amiúde reservado um lugar de mutismo ou de automatismo, de um outro incapaz de se autodeterminar e que precisa ser defendido ou externamente definido.
Os temores da pedofilia, da abdução infantil, da homossexualidade e ideologia de gênero são projetados na vigilância do corpo da criança a partir do entendimento de que ela é um “outro desigual” (CHUN, 2006), incapaz de ter acesso aos supostos materiais do Kit Gay e sair ilesa. Ao mesmo tempo que há um elogio da naturalização do gênero, o próprio bolsonarismo reconhece a possibilidade que a educação tem de promover desvios naquilo que acredita ser congênito. Um problema de conhecimento. De um conhecimento como ameaça.
A entrevista de Bolsonaro no Jornal Nacional do dia 28 de agosto de 2018 foi um dos momentos em que a ideia do Kit Gay alcançou um dos mais tradicionais meios de comunicação nacional, muitos anos depois de seus primeiros pronunciamentos sobre o assunto . Diante dos apresentadores, Bolsonaro tem em suas mãos o livro “Aparelho sexual e Cia: um guia inusitado para crianças descoladas”, da autora Hélène Bruller. Ele contextualiza o objeto quando toma conhecimento da realização do “9º Seminário LGBT Infantil na Câmara dos Deputados”, em que se comemorava o lançamento de um material de combate à homofobia – adulteração de um seminário do Escola sem Homofobia.
Na versão de Bolsonaro, o livro já estava disponível nas bibliotecas das escolas públicas do país. Em seguida, Bolsonaro anuncia para os espectadores: “Então, pai que tenha filho na sala agora, retire o filho da sala”. Ele ameaça exibir páginas além da capa na direção da tela, mas é interrompido pelos apresentadores do jornal. Em 2016, o então deputado federal gravava um vídeo para seu canal acompanhado de sua filha em que apresenta o mesmo conteúdo, não sem antes avisar que, para o que vai fazer, é preciso que nenhuma criança esteja por perto.
Afinal, esses episódios das querelas do Kit Gay formulam o lugar da criança como o de uma figura retórica, uma peça dentro da argumentação que jamais responde por si só. A estratégia ressalta a autoridade paterna centralizadora, com a qual Bolsonaro se identifica, da tomada de decisão no lugar de outros que ainda não conseguem fazê-lo por si sós. A criança precisa ser afastada, porque ainda está aberta ao que o bolsonarismo parece mais temer, na ambiguidade cultural que se produz a partir da democratização do conhecimento e a inclusão social.
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O Kit Gay constroi um regime de imagens de índole securitária, com o principal propósito de promover uma vigilância guiada por valores conservadores. Não só essa teoria conspiratória ganha forma através de seus protagonistas inseridos na política institucional, como Bolsonaro, Damares e demais ideólogos, mas se apresenta como um fenômeno de “vigilância distribuída” (BRUNO, 2013) em um modelo de difusão da produção de imagens por uma ampla gama de produtores-eleitores-espectadores da vida pública. Em outras palavras, não só o político profissional, mas o eleitor se torna um realizador, quer seja de imagens amadoras ou profissionais, que vem somar a uma já ampla quantidade de conteúdos como novos escândalos, notícias falsas e afins.
O que se buscou através desse texto, limitado pelo seu tamanho na tarefa de dar dimensão da pervasividade do Kit Gay, é que por trás de um uso aparentemente aleatório das imagens, residem imagens mentais – mais do que discursos coesos – que acionam o medo e a paranoia no bolsonarista que se sente imbuído a agir. A pedofilia, por um lado, e a criança, como sua vítima, compõe o imaginário que impede aquele que é precisamente o trabalho da democracia, de partilha da palavra e da imagem. Se ao outro é reservado o lugar de um inimigo absoluto, de hábitos e desejos com os quais é impossível negociar, o diálogo também se torna impraticável. A ilusão que confere potência ao Kit Gay é sobretudo de que há um dever moral a ser cumprido, uma interpelação impossível de se negar.
O fenômeno do Kit Gay consiste em uma instrumentalização das imagens do mundo, amiúde ambíguas, de “genealogia dúbia” (STEYERL, 2012), que são capturadas em um dispositivo de afetação e reação dos espectadores. A mamadeira de piroca, o Kit-Antihomofobia, as reportagens, fotografias e matérias televisivas discutindo a identidade de “crianças viadas”, os filmes, performances e demais obras artísticas, toda a diversidade de objetos culturais e políticos do mundo se vê submetida ao imperativo de uma mesma aniquilação da ambiguidade e alteridade na democracia.
Bibliografia:
BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre. Sulina. 2013.
CESARINO, Letícia. Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil. internet&sociedade. São Paulo. v. 1, n.1, p. 91-120. fev. 2020.
CHUN, Wendy Hui Kyong. Control and freedom: power and paranoia in the age of fiber optics. Massachusetts: The MIT Press, 2006.
ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um brasil pós-político. Goiânia. Caminhos, 2021.
STEYERL, Hito. Em defesa da imagem ruim. Revista Serrote #19. 2012