Por Guilherme Giroto
Em uma festa a música toca e faz barulho. As pessoas falam – às vezes escutam, às vezes não. Nada interrompe o som, nem um convite para uma pegação, nem um simples “oi”. Na cena, a música se sobressai, toma protagonismo e completa a palavra das personagens, energizando as pessoas que habitam o ambiente. No curta “Promessa de um Amor Selvagem”, de Davi Mello, o artista realiza uma ação de transmutação ao justapor, num gesto radical de montagem e narração, dois ambientes completamente distintos. A obra, portanto, se divide em duas partes.
Tudo começa assim: plano geral de uma casa antiga no meio do nada. De repente, saltamos no tempo e espaço para o banheiro de uma boate com um pau desenhado na parede com um “CHUPA” escrito. O clima é de boemia e de pegação. Um corte nos apresenta um personagem. Da cabine do banheiro, sai Bruno, em meio à música eletrônica pulsante. O rapaz se olha no espelho enquanto lava as mãos. Essa pulsação sônica é um dos elementos centrais da primeira parte do curta, pois, além de costurar as cenas, o som guia as personagens e a experiência de quem está assistindo a fita.
Saindo pela rua, Bruno procura outra excitação e se encanta com as luzes coloridas e os volumes que ecoam de um apartamento no centro de São Paulo. Sem ser convidado, ele entra. Na entrada do prédio, o protagonista se encara no espelho mais uma vez. Sem dizer nada, a música anuncia mais uma olhada no espelho. A trilha de sintetizadores, além de criar o clima de festa, dita o ritmo da montagem do filme de Mello.
Ao entrar na casa, Bruno olha Laís, a anfitriã da farra. Com um zoom in, a moça olha para o penetra e os sons produzidos por sintetizadores começam a ganhar a cena novamente. A fotografia de Bruno Risas chama a atenção nessa primeira parte da obra, ampliando a pulsação da festa. Com as olhadas no espelho, ou as encaradas para a câmera, o jogo de sombra com as luzes RGB piscantes fazem com que a imagem contribua com o clima de alucinação. A câmera se aproxima de Laís lentamente, dando forma à sua fisionomia no escuro colorido. Luzes vermelhas piscam em um lado de seu rosto, enquanto é iluminada com uma luz azulada no outro lado.
O protagonista continua vagando pela festa até entrar em contato com uma mulher lendo cartas de Tarot. “Se for entrar, feche a porta”, ela diz. A música para quase que totalmente, a energia abaixa, deixando apenas a palavra no meio da cena. A taróloga prevê que ele não terá muito tempo de vida, sua linha vital é curta. Maus presságios no meio do caos.
Bruno volta para a sala do apartamento, no centro da fritação, onde conversa com um homem. Um corte seco nos leva do bate-papo à cena dos caras se pegando – a excitação se mistura ao ambiente e sua sonoplastia. Depois do beijo, em um lugar sem luz e sem música, a crise volta. O assunto das linhas da vida é retomado, mas agora com Bruno falando para seu par que sua vida será longa. Esse outro personagem interrompe o falatório para ver a apresentação de Laís, que performará uma música.
Nessa cena todos estão lá vendo a anfitriã cantar. Bruno se distancia e sai de campo. No momento em que a narrativa se dá por entendida, a montagem transforma a cena. Em um fade out, o apartamento de São Paulo se metamorfoseia em uma casa de campo de um século antigo. A música pára e as luzes coloridas se apagam. Tudo no curta se metamorfoseia através deste gesto.
Na segunda parte do curta, uma família imperial reage à filha que ressuscita depois de ter sido dada como morta. Todos usam roupas brancas ao estilo vitoriano. Agora é dia e ouvimos sons de pássaros. “Morrer não deve ser fácil. Voltar à vida muito menos”, diz a mãe, com os olhos refletindo a luz do sol, para a filha que conta que sonhou ser um homem em lugar de luzes coloridas e música alta. A palavra toma o centro da cena. Como Bruno, a menina deseja excitações. Logo após reviver, já quer se movimentar e sair. Sua família não a deixa. Não há mais para onde ir.
Ao invés de vielas e becos, agora aparecem árvores. A natureza é filmada com luz natural, que a cada corte, anoitece mais. Em voz off, o som de uma reza feita pela família é ouvido, nos trazendo de volta para casa. À luz de velas, a moça se olha em um pequeno espelho em cima de uma bancada, a chama da vela pisca em sua cara, diferente da festa, a pulsação é guiada pela oração, que estabelece um ritmo lento e monótono. Em uma breve cena, a família aparece orando junta, todos de olhos fechados, rezam em um sala escura, com candelabros acesos marcando grandes sombras.
Sobrepondo aquela realidade, Davi Mello utiliza o ápice do sintético no cinema: a computação gráfica. No plano mais aberto do filme, uma espécie de cometa colorido invade o ritmo da quietude da noite. Ignorando sua família, a moça vai atrás do cometa. No meio de um matagal, a jovem encara esse fenômeno de luz, seu rosto toma a tela, milhares de luzes coloridas brilham em sua cara. Ao se aproximar, a onda de sintetizadores retoma aos ouvidos, cortando abruptamente para tela preta, rolando os créditos. O tempo se suspende para dar espaço ao final do filme. Tudo termina assim: com um corte seco.
O sintético de “Promessa de Um Amor Selvagem” vai além de suas luzes brilhantes ou música eletrônica, vai também na sua palavra, que se metamorfoseia na passagem entre os dois ambientes do filme. Navegando entre esses tempos, o diretor utiliza as unidades estéticas para controle do tempo no filme. O sintético não é o “falso”, longe disso. É uma metamorfose que recria nossa maneira de perceber certos elementos: luz led colorida, música eletrônica, cometa e, ao fim e ao cabo, a palavra.