Por Waleska Antunes
Se alguém quiser saber alguma coisa sobre poesia, deverá fazer uma das duas coisas ou ambas: É Olhar para ela ou Escutá-la. E quem sabe, até mesmo pensar sobre ela. E se precisar de conselhos, deve dirigir-se a alguém que Entenda alguma coisa sobre ela.
— ‘O ABC da Literatura’, Ezra Pound.
Em um texto chamado The Art of Moving Shadows, Annette Michelson, teórica da avant-garde americana, discute sobre o primeiro cinema partindo da ótica da fotografia. Segundo ela, a imagem estática inserida no fluxo da narrativa cinematográfica ocasiona uma tensão e um questionamento sobre qual é a validade da imagem cinematográfica estática versus a imagem sequencial e cinemática. A leitura vai em direção a uma relação dialética entre cinema e fotografia para além do aparato e como constante eco em influência e meio.
A inscrição da imagem estática como recurso perpassou os diversos movimentos cinematográficos, porém teve maior ressonância em seu período modernista, em especial com o uso da iconografia e pintura, principalmente no cinema dos anos 50 e 60. Seu uso era principalmente como maneira de questionar a relação entre som e imagem como meio para a representação cinematográfica não somente em forma, mas também em ideologia. Em uma análise para Letter to Jane (1972) de Jean-Luc Godard – um filme composto de uma única imagem estática – ela propõe:
“Letter to Jane (1972) está situado em uma resposta à guerra do Vietnã por Godard e apresenta uma análise crítica de uma imagem estática, submetendo a imagem a um questionamento ideológico intenso, completando assim um ciclo histórico. Ao fazer isso, põe-se de novo em questão: quando um filme é um filme? Ou: o que é o cinema?”
Para além do questionamento ideológico da imagem, a proposição de Michelson é certeira; se o cinema é a imagem em movimento, o que está fora disso pode ser considerado cinema? Ou é uma outra coisa? E que coisa seria essa?
Esse pressuposto parte de uma imagem estática de Jane Fonda, logo, uma representação visual do mundo decomposta – experimentos esses que não são incomuns dentro do cinema, vide Tom Tom The Piper’s Son (1969) de Ken Jacobs e, em certa medida, nostalgia (1972), de Hollis Frampton – mas e quando não há uma imagem e sim, uma palavra? A palavra em si, enquanto matéria, é um ser estático; quem dá o significado ou a torna um organismo vivo é o espectador/leitor. Logo, a palavra por si só em uma tela a 24 quadros por segundo seria cinema? É possível um projeto cinematográfico que torne a palavra estática cinema?
Nenhuma dessas perguntas possui uma resposta – e se possui, levam a outros questionamentos infinitamente, como devem ser todos os questionamentos – no entanto, é possível aliar a imagem e a palavra como seres de instâncias distintas em um filme e, ainda assim, produzir um todo orgânico. Um dos nomes que melhor encapsulam essa fusão entre palavra e imagem, movimento e estático, mundo exterior e interior, o pensamento e a ação, é o cineasta americano David Gatten.
As obras de Gatten se inserem em um corpus fílmico pautado pelo uso da literatura, se valendo da escrita e do que foi escrito impressos na tela junto de imagens, texturas, efeitos fotoquímicos, teorias físicas, narrativas históricas, fissuras e turbulências. Ao longo dos anos, partindo de um cinema artesanal e íntimo, ele estende uma colcha de retalhos constante, costurando referenciais e narrativas que tornam o seu cinema, com a palavra estática impressa na tela, um cinema que se move e se conta a cada frame.
Nas palavras do próprio cineasta, Hardwood Process é “um filme-diário artesanal, criado a partir de técnicas alternativas de processamento, tratamentos químicos e impressão ótica e por contato, é uma história de superfícies marcadas, uma investigação e uma imaginação: sobre as marcas que vemos e as que fazemos, sobre as linguagens que conseguimos ler e aquelas que estamos tentando aprender. Escrito nos arranhões no chão, nas cicatrizes das mãos e nas gravações químicas na emulsão do filme, essas linguagens da experiência são instáveis — vocabulários que mudam constantemente com o passar do tempo.”
Como um filme-diário errante exposto ao acaso da revelação e processamento do filme, e fruto do incerto, Hardwood Process é um filme cuja linguagem está em um processo de descobrimento. As mãos tateiam pelas paredes, as imagens se dissolvem e se reconstroem, o mundo material se torna um misto de cores e ranhuras na tela. Todas essas texturas são entrecortadas por entradas de um diário divididos por dias, onde o narrador fala consigo, conta quem visitou, quem não viu e se pergunta constantemente do que é feito esse filme. Em uma das entradas, ele se pergunta “O que são essas cicatrizes, de que elas são feitas e de onde vieram?”, como quem estivesse se perguntando qual é a maneira correta de interpretar tantas ranhuras e ruídos, e afirmando em seguida: dessas cicatrizes e ranhuras, é possível conciliar e criar, aos poucos, uma nova linguagem, um novo vocabulário. Em uma das últimas cartelas de texto do filme, surge a inscrição color pharmakon. Não por acaso, a noção de pharmakon é um mistério em tradução – podendo ser o grego para elixir, poção, encantamento e, ao mesmo tempo, designar o veneno. É um conceito proveniente de mistério. No caso de Hardwood Process, o phamakon está inserido no filme como um efeito cromático, uma matéria da ordem do inefável. Em outras palavras, pode ser descrita pelo pharmakon de Jacques Derrida como “(…) uma substância, com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço da alquimia.”
Moxon’s Mechanick Exercises, or, the Doctrine of Handy-Works Applied to the Art of Printing (1999): Linguagem enquanto arte e reprodução
Moxon’s Mechanick é o primeiro de uma série de filmes de Gatten que trata sobre a figura de William S. Byrd, escritor americano do século XVIII, com produção teórica prolífica espalhada por diversos registros escritos. As cartas, livros e diários se aliam à biblioteca vasta de Byrd, trazendo à tona o referencial como pedra fundamental no cinema de Gatten, cunhado pelo termo ‘secret reading’ – ou, uma leitura de/em segredo aplicadas aos filmes como citação ou referência implícita. Uma dessas citações foi um livro de Joseph Moxon escrito em 1703 (que batiza o filme) e que é o primeiro manual de estilo e impressão para as primeiras prensas. Gatten pega os princípios de Moxon, sobre como a letra deve ou não se comportar em um meio físico, e aplica à Bíblia de Gutemberg.
Tal escolha não é arbitrária; a Bíblia de Gutemberg marca um ponto de transição entre a matéria escrita e a reprodução mecânica. Os trechos da Bíblia, dissolvidos pela água e colados entre os fotogramas, garantem à palavra não apenas a recuperação do ímpeto primordial da linguagem enquanto significação e enunciação, mas também enquanto reprodução e forma.
Além disso, na segunda sessão do filme, é proposto o questionamento e a navegação da palavra entre línguas, a tradução. Para o filme ser feito, foram utilizadas cinco versões da Bíblia e cada uma delas propõe uma versão da história. A leitura secreta de Gatten mistura esses excertos e, em meio ao segredo da montagem, propõe o colapso e a elevação das palavras traduzidas, as questiona e mostra ao espectador que há a possibilidade de uma história documentada e de uma história secreta, entrecortada pelas anotações de Byrd e traduções e retraduções da Bíblia. O filme é, principalmente, um tratado da letra e seus movimentos, sejam eles em uma análise da letra enquanto forma material ou do movimento do quadro cinematográfico movendo a letra. O texto é físico; o significado não o é.
Dessa forma, Moxon’s Mechanick age como um filme-palimpsesto, onde a primeira inscrição da palavra foi raspada para que outra(s) palavra(s) pudesse(m) ser escritas. As vemos através da transparência da película cinematográfica, sem perder sua materialidade primeira, mas destacadas de um todo, e, citando Moxon, assim criando um Corpo e um Espírito da linguagem no cinema composto por letras capitais.
The Great Art of Knowing (2004): Língua como ciência
The Great Art of Knowing é mais um dos filmes da série sobre William S. Byrd e, desde o princípio, atua como um filme-como-biografia/bibliografia da vasta biblioteca do escritor.
O filme parte de um evento, o leilão da biblioteca de Byrd e se estrutura de forma enciclopédica pelas páginas de um livro do século XVII – cujo qual nomeia o filme – de autoria de Athanasius Kircher. Definido pelo próprio autor como um filme antinômico e de uma iconoclastia gentil, é uma análise sobre como a ciência instrumental e mecânica é a mais nobre e a mais aplicável entre todas as outras ciências.
Isso ocorre porque ela demonstra como os corpos animados possuem movimento e como esses movimentos permitem transformar operações. Segundo ele, todo movimento tem sua origem no centro de gravidade, que está localizado no ponto de equilíbrio entre extremidades com pesos diferentes. Essa ciência também revela a relação entre abundância ou escassez de músculos e o equilíbrio entre peso e contrapeso. Nesse contexto, a mecânica instrumental pode ser entendida também como o próprio uso da palavra. A palavra, assim como o movimento nos corpos, é o que “anima” ou dá vida às ideias e expressões. Se o cinema é a “imagem em movimento”, aqui é a palavra que gera movimento, tanto ao criar imagens mentais quanto ao desafiar significados já estabelecidos. A palavra em si é o peso e o contrapeso, em combinações que estruturam o universo em uma reconstrução do mundo.
Aliado a isso, entre uma palavra e outra, há o entrelace de textos e destinos; Gatten preenche as lacunas deixadas pela ciência, explicável e química, com o que é inexplicável e terreno, como o romance oculto de Evelyn Bird. O espaço entre as letras, as frases e as linhas criam a margem de seus próprios segredos, como se em cada uma das correspondências de Evelyn ao seu amante distante a ensinassem a viver em um imaginário secreto e íntimo, como quem lançasse uma garrafa ao mar esperando que alguém a lesse. Esse romance, da ordem do impossível, se estende em outras obras do cineasta, como no filme What Places of Heaven, What Planets Directed, How Long the Effects? or, The General Accidents of the World (2013), em variação de tom e forma, adotando assim a forma poética e como um breviário-bússola do amor perdido.
As palavras de Gatten são dotadas de forma e movimento; se a fotografia de Jane Fonda em Godard é ideologia, a de Gatten é a palavra e a iconoclastia. E dessa iconoclastia, das palavras na tela, dos mundos dentro de mundos e das narrativas à borda da imagem cinematográfica, o que resta enquanto certeza é que não é o modo como as coisas existem no mundo que as tornam místicas; mas sim, apenas o fato delas serem. E a palavra é. Sempre é.