por Carolina Azevedo
“Se você é cineasta, qual é o seu principal objeto de trabalho? O ser humano – o rosto, o corpo, a voz. Então é claro que eu deveria ser obcecado por isso. E se você é um existencialista ateu como eu, sua vida é o seu corpo. Quando o corpo morre, pronto, acabou.” A fala de David Cronenberg em entrevista à Folha de S.Paulo esclarece o que está por trás de cada um de seus filmes. É um cinema do corpo, não do body horror como a crítica convencionou categorizar, mas, simplesmente, do corpo. Para ele, as entranhas não revelam horror, mas beleza, e a morte não passa de algo natural – e nem por isso menos terrível.
O Senhor dos Mortos é, como o próprio diretor define, um filme que materializa o seu próprio luto. Um filme quase autobiográfico que narra o luto de um homem fascinado pelo controle, que vê um novo mundo, estéril e superficial, após a morte de sua esposa. É menos sobre a morte do que sobre amor e, como tudo em Cronenberg, sexo.
Karsh (Vincent Cassel) personifica esse amor eterno – um empresário que não abre mão de deitar-se ao lado da esposa por toda a eternidade. Mas a obsessão vai além do comum em um novo mundo, mediado pela tecnologia: após enterrar sua esposa no cemitério do qual é dono, coloca-a na mortalha que inventou ao lado de desenvolvedores chineses para monitorar a decomposição de seu corpo.
Quando os túmulos de seu cemitério são violados por um grupo misterioso, Karsh se envolve com a irmã de sua falecida esposa e seu ex-marido à procura dos culpados. O filme mórbido – e não menos engraçado no absurdo da situação obsessiva de seu protagonista – se transforma, então, em uma trama de conspiração. Não segue, no entanto, a estrutura terrível de um filme de crime que segue a linha dos fatos em um quadro de cortiça. A conspiração se constrói como uma colagem dadaista, incoerente e impenetrável – valor máximo de um filme que sabe não dever respostas a um público obcecado pela interpretação.
Do corpo mutilado de sua esposa e da figura tosca da inteligência artifical que guia os passos de Karsh, o que era sedutor em filmes como Videodrome se torna enfadonho, como é tudo nos dias da vigilância e da tecnologia – que não é mais utopia, como nos seus filmes da década de 1980, mas realidade.
Um corpo verdadeiramente mediado e vigiado pela tecnologia não é sensual como aquele que apenas sugeria a possibilidade terrível. Quando a materialidade do corpo não instiga interesse – afinal, “quando o corpo morre, pronto, acabou” –, o que resta a Cronenberg são as palavras, palavras demais para um filme tão visual e nem por isso sedutor.