Por Pedro Tavares
Petrus Cariry é um diretor de carreira muito particular no cinema brasileiro contemporâneo. Dono de um universo próprio com referências concomitantes ao campo lírico e imagético e versátil o bastante para mudar abordagens, gêneros e formas de registrar as ruínas da existência. Seu mais novo filme Mais pesado é o céu foi lançado recentemente nas salas do Brasil e conversamos sobre sua filmografia, abordagens, ruínas e, claro, o que está por trás do filme: um país distópico.
Multiplot: Petrus, obrigado por aceitar o nosso convite. Da primeira vez que o entrevistei, há mais de dez anos, na ocasião do lançamento de Mãe e Filha (2011), conversamos sobre as locações do filme, que também aparecem no seu curta Dos Restos e das Solidões (2006). Ambos os filmes abordam temas como a morte e o fim. Muitas coisas aconteceram no Brasil desde então, e Mais Pesado é o Céu (2023) me traz a sensação de um retorno indesejável ao mesmo ponto, ainda que sua roupagem ensolarada possa sugerir, à primeira vista, algum avanço social e existencial. O que, nesse intervalo de tempo, foi somado ao seu imaginário para criar uma forma de imersão inédita em sua filmografia?
Petrus: O filme Dos Restos e das Solidões serviu como um ensaio para a realização de Mãe e Filha – nesse longa tínhamos uma cidade fantasma, em ruínas, com uma velha que deposita sua esperança em um futuro por meio de um neto que está morto, mas que ela parece negar essa realidade. A protagonista rompe com essa inércia. Em Mais Pesado é o Céu, temos o mesmo sertão, um não-lugar à beira da estrada, onde os personagens surgem dos escombros de suas próprias ruínas, ou melhor, são vítimas de um país arruinado. O progresso parece trafegar nos carros que transportam mercadorias, no posto de gasolina, mas a miséria que exclui milhares de pessoas de qualquer bem-estar social continua. Esse filme foi feito no final da pandemia, quando ainda vivíamos sob um governo quase fascista, numa situação opressora, distópica. Os personagens imaginam ser a família que não são, lutam por sobras para sobreviver, submetem-se a trabalhos pouco dignificantes, onde sofrem violências machistas, entre outras coisas. No final, como em Mãe e Filha, há uma ruptura.
Multiplot: Sua filmografia lida diretamente com a ruína existencial e frequentemente utiliza o horror em suas frestas – ou frontalmente, no caso de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015) – enquanto o lado social, em diversas formas, serve como sustentação para as tramas. Em Mais Pesado é o Céu, parece haver um equilíbrio entre essas duas frentes. Seria essa uma mudança de chave na composição das fissões de um mundo particular e arruinado?
P: Muitos pensadores pós-modernos trabalham com o conceito de “ruínas”, de uma civilização em grande crise, tanto cultural quanto existencial. Eu trabalho essa crise, esse mal-estar, em Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, com uma relação de uma mulher contra o patriarcado, o peso do passado que ela precisa se livrar, mostrado em um flerte com o horror. Em Mais Pesado é o Céu, temos o horror da própria realidade que vai se construindo como algo insuportável; se temos a intimidade de um casal perdido que alimenta sua esperança em uma criança que surge do nada, temos também o apontamento para uma situação social mais grave.
Multiplot: Falando nisso, há a noção de um falso road movie. Todas as suas alegorias do gênero estão lá, mas o deslocamento leva sempre ao mesmo ponto. Gostaria de saber como a estagnação ganhou uma relação gráfica diferente em Mais Pesado é o Céu, se ela já era um contorno definido no desenvolvimento do filme.
P: Sim, pode ser percebido como um “falso road movie”, no sentido de que temos uma estrada que vem de algum lugar e se dirige a outro, mas os personagens estão à margem dessa estrada, à margem da sociedade, à margem da vida, quase impedidos de ter um futuro. Daí a geografia, o peso da natureza, com sua poética e beleza insólita, esmagando o homem e desprezando a estrada. Daí as águas do Castanhão que submergiram o passado e algum momento de felicidade, tornando-se memória. Todos esses elementos dão o tom que ajuda na elaboração estética do filme.
Multiplot: Creio que este é o seu filme com maior investimento e também o mais direto em termos narrativos. A poesia atravessa o filme, a meu ver, mas sua relação com pais e filhos – e a figura do natimorto – segue intacta. Poderia falar um pouco mais sobre essas figuras tão importantes em seus filmes?
P: Esse filme foi um grande desafio, pois minha ideia era realizá-lo com todo o rigor técnico e busca estética, apesar dos recursos de um baixo orçamento. A Bárbara Cariry ajudou muito nesse sentido, otimizando os recursos e viabilizando possibilidades para que eu pudesse realizar o filme. A história, embora tenha voos e possibilidades poéticas, no sentido de novas percepções sensíveis, tem uma base realista. Em quase todos os meus filmes, trato dessa questão da família como um microcosmo da sociedade, a partir de um insight mais sociológico, eu diria até antropológico, no sentido de que os conflitos familiares na totalidade, e no sertão em particular (por conta da força do patriarcalismo), moldam as pessoas de forma traumática. Quase sempre trabalho com personagens femininas muito fortes, que geralmente rompem com a situação opressiva ou buscam saídas. São mulheres fortes e sensíveis ao mesmo tempo. Talvez representem a possibilidade de um novo tipo de família, não patriarcal e não nuclear.
Multiplot: Há uma particularidade neste filme em relação aos outros longas: é possível ver instâncias diferentes de ruína. Nelas, os protagonistas flutuam, e a deterioração da condição humana é mais gráfica. Lembro-me de Clarisse, que pode ser uma exceção, mas gostaria de saber como foi o seu processo de criação deste mundo menos alusivo na parceria com Rosemberg Cariry e Firmino Holanda.
P: Nesse filme, escrevi um argumento desenvolvido, com escaleta. Depois, o Rosemberg fez um primeiro tratamento do roteiro e chamamos Firmino para os tratamentos seguintes, com ótima contribuição. Firmino, além de ter muita noção da dramaticidade de um roteiro, é também um ótimo argumentista. Rosemberg é um grande conhecedor do sertão e da realidade brasileira. Eles trabalharam a partir da minha ideia inicial e da minha proposta para o filme, mas houve, no percurso, uma transformação por conta da difícil realidade que o país vivia. Primeiro pensei em um filme solar, menos duro na abordagem da realidade, mas o “espírito da época” era realmente sufocante e tudo se encaminhou para o resultado que hoje vemos na tela. Um filme é sempre isso: um processo, em que o que acontece na sociedade termina também influenciando nosso processo criativo.