VISÕES ONÍRICAS E PERCEPÇÕES DO ERÓTICO EM FUSES (Carolee Shneemann, 1967)

Por Carolina Azevedo 

Aceite as visões oníricas, devaneios ou sonhos, como aceitaria as assim chamadas cenas reais. Dê espaço até para a percepção real das abstrações que se movem intensamente quando pressionamos as pálpebras fechadas.

(Stan Brakhage, Metáforas da visão, 1963)

Pensar no erotismo no cinema é esbarrar em um desejo que nasce do sonho. Como escreveu André Bazin em À margem de “o erotismo no cinema” (Cahiers du Cinéma, 1957), “o essencial está no onirismo do cinema […] Ora, sabemos muito bem que todo sonho é, em última análise, erótico”. Similarmente, em Metáforas da visão (1963), Stan Brakhage defende um olhar cinematográfico que antecede o realismo que criou o cinema hollywoodiano: “Imagine um mundo animado por objetos incompreensíveis e brilhando com uma variedade infinita de movimentos e gradações de cor. Imagine um mundo antes de ‘no princípio era o verbo’”. Esse é também o mundo dos sonhos, de onde nasce um cinema que, filho de Méliès, toma a forma da magia.

Carolee Schneemann decidiu filmar Fuses (1967) após ver sua percepção abrir-se aos mistérios do corpo feminino em Window Water Baby Moving (1959), de Stan Brakhage. Durante três anos, a artista filmou os encontros sexuais que teve com seu parceiro – o músico James Tenney – através do olhar de seu gato, Kitch. Em imagens turvas de uma película que foi colorida, riscada, queimada e mergulhada em ácido, as energias sexuais são materializadas, recombinadas entre o transparente e o opaco para transformar o pornográfico – explícito – em íntimo – segredo. Os corpos brilham sob as luzes que entram pelas janelas a cada estação, de onde o gato observa, servindo como câmera escura que transforma a luz em fragmentos abstratos de percepção. É o cinema que antecede o verbo. 

O filme, no entanto, nasce de sua antítese: um cinema, como define Brakhage, “amedrontado pela esterilidade sexual”, ou Bazin, “dono de uma longa, rica e bizantina cultura da censura”. Fuses, nesse sentido, é descendente direto de Hypocrites (1915), de Lois Weber: um homem esculpe a verdade em toda sua nudez e é assassinado por um levante puritano; então, o  nu fantasmagórico assombra a burguesia puritana e escancara suas contradições. Durante as performances de Meat Joy (1964), Schneemann tornou-se essa figura dupla quando chegou a ser agredida por espectadores que se sentiram ultrajados pelo seu uso do corpo nu enquanto arte. Apesar de ter vivido o auge da libertação sexual, a artista escreve que se sentia completamente sozinha em sua insistência em integrar sua sexualidade e sua criatividade.

Naquele momento, o que ainda distanciava o nu feminino que havia sido esculpido pelas mãos do homem daquele que não fora fabricado enquanto imagem, mas reproduzido no próprio corpo da artista? Schneemann escreve: “Era permitido que eu fosse uma imagem mas não uma criadora de imagens construindo sua própria autoimagem. Se eu tivesse apenas dançado ou atuado, teria mantido formas de expressão feminina aceitáveis para a cultura.”

 Além dela, Chantal Akerman, Barbara Hammer e Ana Mendieta foram algumas das que tentaram devolver o corpo e o erotismo a si mesmas em seus cinemas e performances. As vontades que movimentaram o primeiro filme de Schneemann foram muitas: “Invadir os tabus contra a vitalidade do corpo nu em movimento, erotizar minha cultura culpada e confundir ainda mais as rigidezas sexuais – pois a vida do corpo é mais expressiva de maneiras diversas do que uma sociedade com atitude negativa em relação ao sexo pode admitir.” Portanto, caracterizar sua arte através de adjetivações que vão do provocativo ao pornográfico é equivocado, face aos esforços artísticos que rendem revisões àquelas imagens tão silenciosas quanto explícitas mais de 50 anos depois.

No texto de 1957, Bazin conclui que, para fazer um cinema erótico que permanece no plano da arte, é preciso se ater ao imaginário, o que se faz através do segredo. “O cinema pode dizer tudo, mas não de forma alguma tudo mostrar.” As imagens do sexo que passam pela tela em Fuses, são encobertas por uma camada de sonho que se materializa não apenas nas intervenções na película – os tons de roxo, azul e verde – mas no ambiente que cerca os amantes. A casa da artista e os seus arredores contam sua própria história de amor. 

O recuo das janelas, o roxo das paredes do quarto e a árvore de natal que enfeita a sala no final do filme fazem com que a casa que o casal tinha acabado de comprar, em New Paltz, envolva a coreografia de Fuses como um cenário de estúdio, pensado para cada cena. A artista escreveu: “[A casa] é minha musa, é meu recipiente, é minha fonte de sonho e função. É meu trabalho e todo o meu trabalho vem da casa, e minha identidade para o cerne da minha vida é esta casa.”

Fugindo da intimidade da casa, imagens de Schneemann correndo nua por uma praia dão o tom onírico definitivo ao filme. No corpo sozinho ou nas imagens da natureza que o cercam, o potencial do erotismo perpassa o ato que ocupa o restante do filme, e a intimidade transcende em direção a tudo que a película registra. Na materialidade do filme e na espontâneidade do movimento, a pulsão do primeiro filme de Schneemann se iguala ao potencial original do cinema, erótico por sua natureza onírica; material e cinético – um cinema do olho não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, livre dos preconceitos da lógica da composição, definindo-se na imagem (reel life) mais do que na realidade (real life).

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