MOSTRAR O CORPO PRA FALAR DO ESPÍRITO

Por Chico Torres 

Disse Paulo Emílio que o pior filme brasileiro ainda nos é melhor do que o mais genial dos filmes estrangeiros. Disse Walter Benjamin que era preciso construir uma arte bárbara, uma barbárie positiva no seio da modernidade, uma arte capaz de começar do zero, de fundar a sua própria tábula rasa. E disse Oswald coisas sobre a rítmica religiosa, sobre os transes, os transidos, as alucinações sob o sol escaldante do Brasil. 

Tudo isso está em Carlos Reichenbach, iluminando seus olhos de boca do lixo, olhos anarquistas para dentro dos preconceitos e das putarias do Brasil, e por isso não mais a subversão e sim a transgressão. Um cinema para além da política porque a política nunca foi suficiente para o cinema, porque politizar o cinema é o querer sério demais, sob o controle de diretrizes bem estabelecidas. E se um dia Reichenbach quis mudar o mundo através de um cinema político, logo percebeu que era mais útil pensar o mundo formulando uma carnavalização do Brasil. 

E a pornochanchada de Reichenbach, não totalmente anárquica, se leva a sério demais; o seu sexo é interlúdio para os “assuntos importantes”, e os seus personagens são tipos, retratos da pequenice e grandiosidade humanas. Em Império do Desejo todos são meio maldosos e frágeis, personagens que carregam as máculas da civilização em seus voos e pousos forçados. Tudo parece se resumir em crítica à moralidade, comentário político e elogio da loucura, uma tríade inevitavelmente explorada através do desejo. O sexo é o balizador de todas as relações que se dão sob a marca da propriedade. A preocupação política é disfarçada através da sensualidade das imagens. Enquanto os moralistas barganham suas perversões através da afirmação do poder pela propriedade, o casal hippie trepa da forma mais desinibida possível, se abrindo para uma utopia naturalista, porque Carlão é, antes de mais nada, um utopista. 

E mesmo que para eles o sexo tenha algo de inocente e puro, há ainda sobre suas cabeças a sombra funesta do ciúme e do desejo de posse. Nico, apesar de todo o sofrimento (ainda que reprimido) em ver sua amada nas mãos dos moralistas, se mantém fiel aos seus princípios libertários e a deixa livre para foder com quem ela quiser. Para o bem ou para o mal, um filme de princípios. No fim das contas é tudo sobre o Brasil, esse lugar do impossível e, por isso mesmo, cheio de realizações impossíveis: puritanismo via sexo anal; Ménage inaudito entre hippies e caretas; rituais e canibalismo feitos por um gigantesco homem branco que enlouqueceu por inadequação social. Reichenbach, um dos últimos socialistas utópicos (segundo ele mesmo) fazendo deboche da esquerda fundamentada na mentalidade pequeno-burguesa de intelectualidade sem praxis. E tudo soa ridículo, extremamente caricato, porque segundo o manifesto do cinema cafajeste, o que se quer é um cinema de comunicação direta.

Em Extremos do Prazer há a mesma tríade (moralismo, política e loucura), a mesma obsessão de Carlão, mas agora sob uma dimensão trágica. Tão atual nos é a representação de uma sociedade cindida: de um lado o intelectual frustrado, assombrado pela derrota pessoal e utópica, resquício da ditadura militar que não só torturou os corpos, mas destroçou as almas daqueles que restaram vivos. Do outro, a classe média em ascendência, os tecnocratas, os meritocratas, os que desejam a grana acima de tudo. Estupradores, misóginos, anti-intelectuais, figuras que brotaram do esgoto da história e que estão por aí, institucionalizados. 

Apesar desse esquema, os personagens mais fechados em sua caretice acabam sempre sucumbindo às almas mais libertárias. Carvalho, o advogado mercenário de Império do Desejo, abandona a sua família para propor ao casal hippie uma vida idílica em um sítio. E o filme termina de forma perturbadora, em falsa felicidade. Enquanto a exploração da propriedade continua, Nico e Lucinha seguem, alienados, a se amar na grama. Já Ricardo, o reaça de Extremos do Prazer, recalca a todo momento o seu desejo de se aproximar daquilo que lhe é estranho, mas que o fascina: socialismo, liberdade sexual, intelectualismo etc etc. Carlão parece jogar com ambivalências, o sexo pode alienar tanto quanto libertar: pode ser caminho para uma política libertária, assim como para um processo de escamoteamento das mazelas sociais. De todo modo, sempre o sexo, sempre o desejo: “a gente tem que tentar a utopia a partir de nossas relações familiares e eróticas”. 

Em sua utopia do artesanato, é como se Reichenbach não pudesse se decidir, e talvez essa indecisão seja um mérito. Há muita seriedade em seus filmes, mas não o suficiente para se evitar uma sacanagenzinha de vez em quando, porque a sacanagem quase sempre tem algo a dizer sobre o discurso que está sendo desenvolvido no filme. Assim agrada a gregos e troianos, aglutinando o melhor dos dois mundos, porque é vanguarda e é banal. Intelectuais e punheteiros se curvam às artinhas de Carlão, autor para ser visto com a mão no queixo e de pernas cruzadas num cinema sujo de um centro metropolitano qualquer.  Mostrar o corpo para falar do espírito, é assim o cinema de Reichenbach, do Carlão.

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