Por João Pedro Faro
Las preñadas (2022), de Pedro Wallace, lembra a moda dos romenos. Um Doutor Lazarescu sem grandes humores ou uma antítese semântica de 4 Meses, 3 semanas e 2 dias, com uma aparência geral de novelão. O esforço é estabilizar uma abordagem do real através de tragédias reconhecíveis, populares. São intensas crises de maternidade que perpassam um dia na vida de duas grávidas (Ailín Salas e Marina Merlino), ali na fronteira entre Brasil e Argentina. Em sua curta duração, os dramas sociais não são interesses individuais, não sustentam particularidade. O marido alcóolatra, as crianças deixadas sozinhas em casa ou o atendimento precário dos hospitais públicos surgem mais como obstáculos aventurescos do que efetivos estágios dramatúrgicos. O miolo é a parte mais efetiva: a câmera estabiliza, filma detalhes das paisagens que a dupla de grávidas atravessa, ouvimos suas reclamações em monólogo, seus corpos ficam reduzidos no quadro. No resto do filme, a câmera instável tem papel impositivo, seu movimento de aproximação com os atores parece preceder ideias mais articuladas de composição. São boas atrizes, colocadas em situações costumeiramente “latinizantes” (essa imagem da mulher grávida, sofrida, cheia de filhos num barraco de madeira) que entregam, em algum nível, o peso de realidade que o filme sugere buscar. Acaba sendo exemplar como um sintoma curatorial (um comentário banal de se fazer, claro, mas que aqui ganha uma boa justificativa para ser feito): esses filmes bem produzidos, “assistíveis”, com a causa social bem declarada e os gastos públicos justificados, presos num campo inócuo, incapaz de perturbar qualquer gosto. Ao fim da projeção, quase tudo parece resolvido, e talvez esse seja o grande vazio.
Moto (2022) de Gastón Sahajdacny, filme de processos contemporâneos comuns, encontra seu espaço próprio de existência. O “docficção” (sera que poderíamos, em conjunto, encontrar novas palavras para esses filmes?), a cidade como personagem, os tangenciamentos políticos, os motoqueiros (personagens centrais do novo cinema), a dilatação do drama… Tudo que é comum pode ser relevado pelo romance, nos momentos entre os protagonistas Mariano e Constanza, quando enquadrados conjuntamente. Juntos, vivem os dois travellings mais notáveis do longa, um no topo de um morro, com a cidade iluminada em segundo plano, outro ao final, acelerando a motocicleta por uma avenida diurna. Para um filme com esse título, vale perceber seu movimento de lentidão. Até quando filma Mariano em movimento, a sensação é de uma estabilidade prisioneira, uma vivência urbana demarcada pela impossibilidade de progresso. Córdoba existe como terreno irregular. Por vezes, a cidade integra os personagens, no canto ou no centro dos quadros. Outras vezes, parece vazia, em quadros de paisagem quase aleatórios, desocupados de registros memoráveis. Entrecortando os momentos de encenação, estão filmagens em minidv de natureza caseira. São as cenas de efeito sentimental efetivo, parte pela trilha lo-fi, mas majoritamente pelo aparecimento dos grãos da imagem (vale questionar porque tão poucos cineastas utilizam extensivamente os efeitos dessas câmeras, já que todos parecem conhecer suas capacidades). Uma das sequências finais com a filmadora caseira, quando o romance já está efetivado, mostra o casal se gravando em um parque, percebendo os arredores com proximidade, o granulado texturizando toda emoção. As variações de luz ganham dimensão justa, os espaços escuros ficam bem preenchidos de movimento, com os ruídos da tela abastecendo qualquer lacuna dramática que poderia distanciar o projeto de variações substancias. No fim é isso, acolhe-se o romance em tela, quando já não há mais o que fazer. O conforto é um problema grave, será possível mantê-lo continuamente como valor de produção?
O Estranho (2023), de Flora Dias e Juruna Mallon, é aula. O projeto, ao ser descrito, consegue perpassar todos os termos de uso disponíveis no mundo curatorial: territorialidade, ancestralidade, colonialidade, identidade, esse tipo de coisa. Não há mal intrínseco a isso, imagino, já que o cinema consegue existir apesar de sua departamentalização. Durante sua primeira metade, somos apresentados a uma tese um bocado objetiva, compreendemos seu lugar de ocupação e como o filme pretende se mover diante de seu conceito central. Uma câmera precisa dá ritmo ao discurso, somos apresentados a uma cadeia de personagens e percebemos, com fluidez e clareza, suas razões dentro desse cinema. Quando a projeção avança, sua cadência inicial vai sendo cada vez mais apagada, até desaparecer completamente. A partir de dado momento (uma cena específica de dança, de uma consciência de classe culpada e improdutiva, infértil) e de maneira bruta, o longa vai construindo uma sequência de cenas imperdoáveis, onde o conceito inicial (que já estava óbvio em sua abertura, antes mesmo do título aparecer) vai encontrando novos jeitos de ser explicado ao público, com direito a cinco “talking heads” documentais. Olhando ao redor da sala durante a sessão, dava para confirmar que estávamos todos entre adultos, o que torna ainda mais difícil a compreensão dessa decisão maçante, mercadológica, de escolher fazer um filme que acaba pela metade e resolve, pelo resto da duração, explicar o que acabávamos de assistir, para não deixar nenhuma ponta de dúvida sobre suas boas intenções. A sensação principal é de que as diretoras resolveram encenar algo como uma reunião de financiamento, filmar os pitchings do projeto ao invés de seu roteiro (e faz questionar se há ainda alguma diferença entre essas duas coisas). Se o terror dessas últimas décadas é mesmo o abismo do mercado de cinema internacional, O Estranho entra como a figura mais conforme, reconhecível. Da distância entre a Europa e Brasil, das construções malditas em território nacional, resta uma ponte, um caminho único a ser trilhado, sempre dando cada passo com o máximo de cuidado para não ferir qualquer conexão comercial.
Propriedade (2022), de Daniel Bandeira, é um thriller desconjuntado e imperfeito, com grande carga de entretenimento. Habitamos a terra do gênero cinematográfico como irreconciliador de classes, o que parece natural e condizente com as correntezas contemporâneas. Não chega a ser um filme de cerco, já que seus grandes efeitos não são resultado de uma espacialização muito cuidadosa. Também não acredito que o conflito de classe, gerado pela revolta dos trabalhadores de uma fazenda contra seus patrões, seja o motor de suas construções. Creio em uma terceira opção, mais condizente com o que acontece em tela: o encontro de um equilíbrio perturbador de terrores, onde trabalhador e patrão se encontram igualmente animalizados, amorais, movimentados por uma ocasião odiosa que só abre espaço para a matança. Diferente de outros filmes similares, não há êxtase em toda a sua violência, não há prazer na vingança do oprimido contra o opressor. O que se desdobra é um movimento contínuo, imparável, de horrores situacionais, onde os personagens caminham de acordo com a pulsão de morte. Dentre o extenso grupo de atores que protagonizam a revolta na fazenda, não há grandes personagens a serem lembrados, não há grandes personalidades, isso não parece interessar ao filme. O que prevalece é um movimento conjuntivo e relativamente ambíguo de força, uma série de infortúnios cabulosos, construídos por cima de arquétipos de classe, um furor por violência que não é tão dependente de seu verniz social quanto pode aparentar. Fosse o caso, a construção dos personagens seria outra, o engajamento por suas motivações viria de outro lugar. É um filme “de roteiro”, carregado pelo interesse em seus absurdos acontecimentos sucessivos (uma violência que vai sendo cada vez mais despersonalizada, o que é comum a esses projetos). Não é um thriller de grande elegância, não é um filme de conflitos entre enquadramentos, sua tensão e seu entretenimento são carregados por essa força grosseira e inconclusiva, capaz de pensar em diversas imagens sem necessariamente transformá-las numa ideia fílmica encenada, elas ficam acontecendo por entre essas associações consecutivas de brutalidade. Sobrevive, ao fim da projeção, esse sentimento de horror, um astral negativo, um lugar sem heróis ou idealizações de povo. Está aí um elogio possível, dado todo o enfrentamento necessário para encarar Propriedade.