Por Chico Torres
Aqueles que foram silenciados precisam falar. Aqueles soterrados pelos vencedores de um tempo linear e uniforme, precisam, ainda que mortos, falar. A morte, aqui, em sentido literal e simbólico, com o poder de representar tudo aquilo que produz o emudecimento, que demarca o lugar do vencedor e do vencido. É preciso, então, que esses mortos falem, que ressurjam dos despojos do tempo e que possam dizer o que precisa ser dito.
No campo artístico, o cinema é uma ferramenta eficaz para cumprir com essa função política da arte, já que consegue produzir diversos jogos e transgressões no tempo e no espaço para que possamos vivenciar as suas histórias e fundamentar outras narrativas para a História. Quero tentar explorar um pouco melhor essas questões através de um olhar sobre “Mato seco em chamas”, de Joana Pimenta e Adirley Queirós.
O filme amplifica as vozes das gasolineiras que trabalham, lutam e se divertem com o máximo de autonomia que conseguem obter naquela realidade pré ou pós-apocalíptica. Por outro lado, penso que o que aprofunda o sentido político da obra não é propriamente o seu perfil militante, mas a fusão entre ficção e documentário e a utilização de planos longos na composição da narrativa. Nesse sentido, quero pensar como esses elementos compõem o filme através de silêncios que a meu ver contribuem para o aprofundamento do caráter crítico da obra.
É possível apontar duas formas de silêncio em “Mato seco em chamas”. O primeiro é o silêncio das vozes emudecidas, o silenciamento. Esse tipo de mudez se apresenta como a expressão mais militante da obra, ainda que suas imagens não sejam convencionais. O silêncio que se faz presente, por exemplo, na madeireira onde as mulheres passam a trabalhar depois da ruína do seu negócio, ou antes do sucesso da empreitada (o filme joga com essa temporalidade circular). É o silenciamento de uma realidade invertida, de quem não é mais dono do seu próprio trabalho e, agora, apenas responde a comandos aleatórios. É preciso lembrar que essas mulheres constroem uma base de extração de petróleo, produzem gasolina e vendem para motoboys da região. Todas as etapas de produção são realizadas por elas: extração, industrialização e venda. Depois de experimentar a autonomia de produzir, o silêncio se apresenta, portanto, nesse lugar da subalternidade e da exploração.
Outro momento que se utiliza desse tipo de recurso, agora através de um efeito de choque dentro da montagem, é o ônibus que se converte em espaço de festa para logo em seguida, em um corte abrupto, transportar as presidiárias para a penitenciária, todas bem sentadas, uniformizadas e silenciadas. Há no filme, portanto, a construção desse contraste entre expressão e silenciamento. As gasolineiras se expressam de diversas formas, mas há sempre a presença da repressão que tolhe, simbólica e literalmente, a liberdade daquelas mulheres.
A filmagem da vitória eleitoral de Bolsonaro é a realização extrema desse tipo de silenciamento advindo de forças externas, só que em um nível de drama coletivo que agora não afeta somente as personagens, mas também nos põem calados. O que o traveling de quase cinco minutos impõe é também o nosso emudecimento incrédulo, porque somos espectadores daquele passado recente e traumático. Ao nos impor de uma vez por todas os limites entre ficção e realidade, instaura-se na obra o efeito da distopia e sua presentificação.
Uma outra forma do silêncio se dá através dos planos longos do filme, revelando aspectos mais imagéticos e contemplativos. Os planos se demoram naquilo que é mais prosaico nas personagens, nos dando o tempo necessário para conhecê-las por meio de suas peculiaridades, em uma dinâmica de contrastes entre imagens/situações. Mais do que acompanhar a trajetória das gasolineiras, nós a sentimos em suas subjetividades, adentrando nos detalhes de suas expressões, contradições, falas e pausas. Contemplamos os silêncios do cigarro, do posto de vigilância, do trabalho da extração do petróleo, das danças, andanças e lembranças que preenchem suas vidas. Todos esses momentos compõem as frechas por onde nós espectadores devemos adentrar de quando em quando para preencher a história das gasolineiras da Ceilândia.
O interessante é que o heroísmo daquelas mulheres acontece através da junção entre o prosaico e o grandioso. São mulheres muito reais, mas ao mesmo tempo estão envoltas em uma pictorialidade mágica através da construção dos planos e daquela ambientação apocalítica de futurismo precário. E assim se desenvolve a lenda das gasolineiras: uma ultra ficção dentro de uma ultra realidade. Talvez esse seja o grande mérito do filme, sua capacidade de documentar e ficcionalizar de modo que esses elementos sempre se interpenetram e se complementam adequadamente.
Quando nos deparamos com a interrupção da narrativa por causa da prisão de Joana (Léa) e vemos essa própria interrupção se converter em elemento estético para o desfecho da obra, mais uma vez o peso daquelas representações recai sobre nós, porque estamos de novo diante da realidade que se apossa da ficcionalidade (ou seria a ficção se apossando do real?), impondo os seus limites e nos fazendo adentrar nessa atmosfera ambígua e politicamente poderosa. O filme, por fim, é silenciado, mas no limite da voz ainda se deve falar e essa fala vem como denúncia contra o emudecimento. Ainda que exploradas, presas, mortas, impedidas de qualquer maneira, as gasolineiras procuram falar, existir e se constituir como uma lenda brasileira, com o devido respeito que todas as lendas devem possuir.