Por João Pedro Faro
Trata-se de um problema crônico, em geral. Surge da insistência por determinados experimentos e encontra, nos entraves da realização, um aprofundamento pela problemática crônica, pelo que resiste na persistência por determinada imaginação fílmica e pela posterior determinação de sua duração em tela. Nos pedaços de película revelados por uma câmera digital, ou em camadas de imagens pixelizadas sobrepostas por outras dezenas de camadas, inscreve-se a busca pela formação de uma imagem que seja inédita aos próprios registros que a produziram, a revelação de um organismo interior que consiga ser capturado através do rearranjo de suas formas originais. Podemos falar em termos de uma pequena expedição arqueológica de achados crípticos, típicos das profundezas e catacumbas, onde exista similar valor entre cavar e enterrar.
Em sua cadeia de produção individual, Vinícius Romero estabiliza uma rede variada e particular de cinema, protagonizada por composições materiais de diversos processos cinéticos. Comenta-se, a seguir, quatro filmes inéditos.
Neste ar, de onde chega um fabuloso marinheiro para ocupar o seu lugar entre as esferas (2023) é um filme gerado por trabalhos de remontagem ao longo dos últimos dois anos. Nesse caso, as imagens acontecem por modulações de caráter superficial, são sobreposições entre registros digitais e filmagens em VHS que ressaltam as camadas superiores da tela. Flores, paisagens e atores de cinema, em balanço de potências, escorrem pelas suas cores saturadas, são liquidificados pela fricção dos meios de registro, a filmagem que filma a filmagem de outros filmes, despejos de pixels sobre grãos que formam correntezas de movimentos sobre as imagens. Mas o efeito não é apenas gráfico, torna-se fílmico na montagem, por composições fragmentadas de tempo onde as imagens escapam com rapidez. Algumas retornam em aliterações, outras se diluem por entre as variações temporais que montam uma sequência concisa (ainda que imprevisível) de formas. A montagem de Neste ar também deve ser notada, dado o uso do VHS, pela atribuição dos glitches em seu arranjo, que alterna planos como alternativa ao corte seco, uma colagem integrada aos efeitos, dividindo as cores, derretendo formas. Os glitches aparecem como uma atribuição orgânica da ferramenta de registro, dentro de um projeto soterrado pelas possibilidades múltiplas da artificialidade, o analógico convulsionado.
Neste ar é um curta silencioso, com uma breve trilha musical protagonizando os momentos finais. Esse artifício é uma recorrência dentro dos filmes do Vinícius, quando um trecho sonoro aparece rapidamente após vários minutos imagéticos. É um efeito de razões esclarecidas, comum a quase todo tipo de cinema, o abandono e a presença do som, mas o que vale ressaltar são as variações específicas do método em suas diferentes reescritas internas.
Nesses filmes, de caráter rítmico muito denso, comumente relacionado ao musical, a presença da música acaba por comentar-se de maneira inevitável. Em Los dias. Sálvame. Las noches. Hueco (2023), a estrutura é arranjada através dessas variações sonoras. Dividido em “movimentos”, propriamente determinados pela pontuação dos diversos títulos que existem dentro do título, trechos fílmicos são apresentados com recortada trilha sonora. As partes do filme são separadas por algumas telas-preta silenciosas (longas “pontuações”, reticências), que adensam o nível do efeito proposto por cada trecho de imagem e som. Los dias… consiste em seu trabalho por cima do fotograma digital aliado à dimensão de uma lente analógica, seus registros espaciais e luminosos que surgem de atravessamentos cotidianos, o problema crônico aparecendo através das crônicas. Os saltos entre os fotogramas unidos truncam a fluidez, não são imagens onde a abstração escorre pelo registro, ela é moldada por movimentos retilíneos.
O grande momento está na parte final, quando diversos cruzamentos entre luas passam pela tela preta. A lua faz diagonais aceleradas pelo quadro, muda de tamanho, se multiplica e desaparece. Um trecho de programações mais simples, estabelecidas em um efeito objetivo na reorganização astral, que demonstra não apenas sua qualidade temática como também trabalha por possibilidades mais raras da sobreposição, buscando por imagens que, amontoadas, se dissipam ao invés de aglutinar.
Ruler of the great heavens, are you so slow to hear crimes? And so… / Hieronymo está louco de novo (2023) é um caso contrário ao anterior. O curta, dividido por duas cartelas de texto que apresentam outro título fragmentado, é de fixações por textura e suas ocorrências abissais. São rearranjos multidimensionais de natureza obscura, ondas intensas de texturização que apontam para choques entre diferentes movimentações internas. Alguns rasgos luminosos atingem a superfície do quadro, outros giram tridimensionalmente. As imagens sem som variam através do corte por seus modelos de estrutura material, mesmo quando desprovidas de uma forma fixa. Podem ser vistas como ferrugens ou infecções, são imagens que se alastram pelos cantos e para dentro de si mesmas, constituições caóticas de luz. E a conclusão é novamente sonora: em um último plano nítido, um pôr do sol visto do mar é sobreposto por um trecho de canto, um deslocamento final que dialoga com todos os outros.
O Quarteto de Dante (2023) é outro tipo de variação sistêmica. O título e a estrutura do filme comentam Brakhage, mas seu processo caracteriza sua particularidade esportiva de apropriação (que pode ser tanto lúdica quanto cínica, dependendo do espectador). Ele usa a revelação de película através da câmera digital como uma unidade de movimento vertical, o atravessamento dos frames pintados em uma coluna contínua que se movimenta no quadro, de baixo para cima (o que já o diferencia de Brakhage, cuja colagem entre pinturas se dá por cortes de variação molecular frame-a-frame). A tela é divida em quatro, aproximada, afastada, mas todas as mudanças se dão em níveis de enquadramento, enquanto a película segue a trilha da coluna vertical. As texturizações da tinta na película variam pelo relevo, se espalham em dimensões rasas, ramificam-se por envergaduras coloridas ou reluzem como superfícies plásticas endurecidas. A luz, processo mais custoso às revelações materiais que possibilitam qualquer filme, é outra protagonista do processo que rearranja suas capacidades. Quarteto de Dante protagoniza a luz mais constante de todos os filmes comentados anteriormente, no fundo branco que reluz o frame para possibilitar a revelação da película e que, constantemente, escapa pelas frestas das pinturas como um segundo plano.
Essas projeções comentadas revelam permanências experimentais aliadas a um esforço de atribuições. Nesse terreno fertilizado com sal, interessa ser percebida certa constância obsessiva por ideias a serem testadas por seus próprios limites, em uma corrente afirmativa de problemas. Uma série de realizações cuja maior preocupação sugere ser o efeito da dissociação através de diversas associações, composições onde o registro se torna a forma, esculpe a si mesmo até perceber o que permanece e o que se desfaz.