Bêbado de azul e vermelho: William Friedkin está vivo
Por Rubens Fabricio Anzolin
A função cinematográfica se mostra então eminentemente
favorável à obra inovadora do demônio.
(O cinema do diabo, de Jean Epstein)
O olho. A testemunha, a chave de acesso por onde entra o demônio, o portal que permite transformar-se em outro. Os olhos arregalados de Max Von Sydow em O exorcista, o desatino fulgurante de Al Pacino em Parceiros da noite, a fúria sombria de Benício del Toro em A caçada. O gesto de olhar: atingir algo, fitar um objeto, absorver e ser absorvido. Tudo começa no olho — depois do olho nada mais é igual. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre o olhar.
O corpo. Corre desmedidamente. Sua, agita-se, dobra-se e retorce, tal qual uma massa de modelar. O corpo é uma plataforma, que zanza incessantemente por todos os lados, rápido e arteiro, mas também frágil e sensorial. É um sintoma do meio: o corpo adere àquilo que está ao seu redor, é o instrumento pelo qual instala-se a selvageria, o caos, o conflito. O corpo possui e é possuído. Tudo no cinema de William Friedkin é uma questão de possessão.[1]
As coisas. Deslizam. Às vezes ligeiras demais. Às vezes lentamente. Chocam-se até se converterem em rastros pelo ar. As coisas pegam fogo, tornam-se pólvora, viram partículas de guerras interiores e exteriores. É difícil capturar as coisas, elas se alternam rapidamente, trocam de dono, de aparência, de usabilidade. As coisas são para o bem e as coisas são para o mal. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre como filmar as coisas, como dar movimento à matéria do mundo de modo que até o mais estático dos enquadramentos adquira uma energia caótica.
A topografia. Localiza cada um dos personagens em um breu, radiografa seus sentimentos. Não se trata de uma mera questão de geografia, é sobretudo um estado de espírito: Comboio do Medo e Parceiros da Noite são filmes terrivelmente azuis; O exorcista é embalsamado, fosforescente e esfumaçado, composto de neblinas; Viver e Morrer em Los Angeles queima a pele, é indissociavelmente vermelho, como também o é Possuídos, mas dessa vez com um vermelho diferente, um vermelho cristal, refletido, quase branco. Caçado é gelo. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre ficar embevecido de cores e estágios mutáveis de sensações, é sobre um estado de espírito dominante, avassalador, quase homogêneo.
Os homens. São braços do estado, da instituição, do status quo. São também a ponte para que cada um desses órgãos, da polícia ao FBI, da Igreja ao exército americano, sejam corrompidos pela indissociável, mágica e cruel realidade do mundo real. Os homens de William Friedkin — e seus filmes em boa parte são sobre isso, homens — são frágeis e indeléveis. Eventualmente podem ser cruéis, mas são sobretudo frágeis, carcaças quebradas de um mundo mecanizado que sucumbe aos seus próprios traumas e mistérios. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre traumas e mistérios, sejam eles do corpo, da carne ou do sobrenatural. Nenhum de seus personagens passa ileso a eles.
A madrugada. Foi onde conheci os filmes de William Friedkin. Suas obras me educaram no calabouço das madrugadas quando não havia nada que poderia parecer mais aconchegante e desafiador do que uma imagem de dois carros se chocando vertiginosamente pelas ruas de Los Angeles ou Nova York. Não haveria nada de mais enigmático que o rosto celestial de um jovem Willem Dafoe sob o bálsamo de uma magnânima luz vermelha numa câmara de revelação de fotografias. Afinal de contas, colocar fogo em todas as coisas sempre foi uma opção das mais razoáveis, e ele fazia isso como poucos. Tudo no cinema de William Friedkin é sobre colocar fogo em todas as coisas, ativar aquilo que foi esquecido ou deixado de lado, dar à matéria outra significação que possa parecer a destruição total ou o acendimento de uma nova partícula de força sob a luz das chamas.
Se William Friedkin está morto, coloquemos fogo em suas vestes, para que ela possa transformar-se então em outra coisa, para que o sujeito possa ser possuído pelo outro tal qual seus próprios personagens. Não poderá haver inércia, é tudo movimento.
William Friedkin está morto: ele está mais vivo do que nunca.
[1] Luiz Fernando Coutinho escreveu um texto exemplar sobre possessão no cinema de William Friedkin. Algumas de suas ideias estão neste parágrafo. https://limiterevista.com/2021/03/30/a-possessao-no-cinema-de-william-friedkin/