DÉPAYSEMENT: SILÊNCIO E RECUSA EM La Noire De

Por Ana Júlia Silvino

A importância da transmissão oral no continente africano, segundo Amadou Hampâté Bâ, etnólogo e escritor malinês, se dá porque as heranças culturais e as memórias coletivas transmitidas pela fala são concebidas nestes territórios como sagradas. Para o autor, a performance oral pode ser entendida como um testemunho daquilo que é o indivíduo. Ao falar, o sujeito torna-se a palavra que profere. Ousmane Sembène se dedicou, fundamentalmente, em preservar a tradição oral através da criação de um método próprio. Na estética sembèniana a língua é concebida como um fator primordial para a representação do cotidiano e, com exceção dos três primeiros filmes do diretor senegalês: Borom Sarret (1963), Niaye (1964) e La noire de… (1966), todos os outros são em línguas nativas como o wolof e não em francês.

Em La noire de (Ousmane Sembène, 1966), a protagonista Diouana é uma babá que se muda de Dacar para Antibes, na França, para trabalhar em uma casa de família. Entretanto, em território francês, Diouana quase não se pronuncia, o espectador só constrói um imaginário acerca das opiniões dela devido a uma concepção formal de voice-over.  Diouana não dialoga com os patrões, mas seus monólogos interiores, onde se questiona sobre a sua vida na metrópole, são todos em francês. A protagonista entende a língua do colonizador, mas escolhe não a reproduzir. Enredando-se numa fala que só diz respeito a si mesma, Diouana constrói entre a voz e o silêncio, um entre-lugar. Paradoxalmente encontra no ato de imaginação da língua francesa, mas não na reprodução dessa linguagem, um espaço possível de pertencimento. 

A primeira manifestação do voice-over é logo na sequência inicial quando Diouana, usando um vestido de grife dado de presente pela patroa em Dacar e uma peruca, desembarca em Antibes e se pergunta, em monólogo interior, se alguém a veio esperar. Ela encontra o seu patrão e no percurso até o apartamento, onde irá viver e trabalhar, Diouana tem o primeiro e único vislumbre romantizado da metrópole. No carro, o patrão diz que a França é um bom país, e a protagonista responde com a única frase que sabe pronunciar em francês: Oui, monsieur (sim, senhor). Quando Diouana chega a seu novo local de trabalho e é introduzida às suas funções, o clima da história muda completamente. As atividades domésticas que ela exerce são muitas e aos seis minutos de filme, com o auxílio do voice-over para representar os pensamentos e a insatisfação da personagem com a rotina, o espectador tem conhecimento de que as funções que ela exerce não correspondem à promessa de trabalho. 

O monólogo é apresentado ao mesmo tempo em que a personagem trabalha de forma silenciosa. A sua vocalidade ocorre apenas na representação formal dos seus pensamentos, como acontece predominantemente no filme. Entre reflexões interiores da personagem acerca da França e dos muitos lugares que ela gostaria de visitar, há uma sequência de suma importância. Na cena, Diouana limpa o chão da sala usando uma variação do traje que vestiu para desembarcar em território francês: um vestido de gala, sapatos altos e uma peruca. A patroa reclama da vestimenta dela e, em um plano americano, a batiza com um avental. Daí em diante, a rotina exaustiva só se intensifica. Diouana gradualmente vai deixando de ser um sujeito para se tornar uma ferramenta de trabalho cuja única função é manter a casa limpa.

Em um momento de catarse após repetições arraigadas na rotina metódica, Diouana transforma a sua postura silenciosa em ação e se tranca no banheiro. Pressionando o próprio corpo contra a porta, a personagem escolhe quebrar o fluxo mecânico da rotina. A voz off é inexistente. Diouana não pensa em nada; só age. O banheiro, apresentado pela primeira vez no filme, é o cenário de um momento de suspensão, uma vez que ali a personagem encontra uma saída, um espaço para além da cozinha e da sala de jantar, que vale a pena ser ocupado. Enquanto a patroa bate incessantemente nessa porta, o corpo de Diouana, que como uma máquina nunca para de trabalhar, permanece imóvel pela primeira vez. Silencioso por completo. A câmera, que antes prioriza filmar as mãos que lavavam os pratos e cozinhavam o arroz, agora foca no seu rosto, a humaniza. 

Esse dispositivo de tomada de consciência é semelhante ao utilizado no filme Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1976). A narrativa, assim como a desenvolvida em La noire de, acompanha com rigor a rotina metódica das tarefas domésticas. Jeanne, uma dona de casa viúva, levanta sempre no mesmo horário, arruma a casa, acorda o filho e prepara o seu café da manhã. Sai para fazer compras, prepara a comida, arruma a casa novamente e vai dormir. No dia seguinte realiza exatamente as mesmas funções. A quebra do fluxo narrativo está no fato de que Jeanne faz sempre as mesmas coisas, até que, certo dia, acorda mais cedo e decide se sentar por alguns minutos no sofá de sua própria casa. Esse momento de suspensão, onde esse corpo deixa de trabalhar, causa um desequilíbrio na rotina e, a partir daí todas as tarefas que colocavam Jeanne como objeto mantenedor da ordem familiar começam a dar errado.  

La noire de possui o mesmo gesto. No entanto, diferente de Jeanne Dielman, os usos do voice-over ilustram uma trajetória de tomada de consciência que ocorre na mente da personagem. A vivência de Diouana na Riviera Francesa tem consonância com a experiência do negro estrangeiro. A linguagem, nesse caso, se configura em mais uma armadilha colonial. Segundo Frantz Fanon “Falar é ser capaz de empregar determinada sintaxe, é se apossar da morfologia de uma outra língua, mas é acima de tudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização”.

Depois da cena no banheiro, Diouana se recusa a seguir a mesma rotina de antes. Não veste mais a peruca e nem usa avental. Posteriormente, escapa das condições de trabalho análogas à escravidão no mesmo banheiro, encerrando um ciclo de auto-percepção com uma reflexão profunda sobre a ex-metrópole e as pessoas que deixou em Dacar. Silenciosamente, ela faz as malas como se estivesse se preparando para retornar para a África e as posiciona do lado da banheira. Submersa na água, o silêncio de Diouana aponta para um grito de emancipação no único lugar onde se sente livre na França. Sembène utiliza o voice-over como recurso estilístico para permitir que Diouana se aposse da morfologia da língua francesa em seus pensamentos. Entretanto, não permite que a personagem assuma essa cultura – neste caso, o lugar do colonizador – através da palavra.

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