À SOMBRA DA SAUDADE

Por Gabriel Moraes

Antes mesmo do início, um aviso nos informa de que o filme foi intencionalmente não legendado. Já de partida, estamos diante de um distanciamento da palavra falada que supõe uma estética que se faz sobre uma certa forma de silêncio, que se faz com uma linguagem de hipervalorização dos espaços, corpos e objetos em quadro; uma estética que leva ao limite a fisicalidade como premissa de construção tanto do impacto sensório quanto das estruturas de significado da diegese. Se a palavra é um dos instrumentos mais eficientes para a elaboração discursiva de um filme, para a engenharia de um projeto de ideias que tende a se valer do texto para orquestrar a própria hermenêutica na qual procura operar, caberia, a partir desse disparador, avaliar quais pontos de acesso um filme que resigna abertamente esses caminhos pretenderia conceber.

É certo que levantar uma questão dessa ordem implica pensar problemas de espectatorialidade, e ainda que a essa altura seja um assunto muitas vezes desgastado e infestado de lugares comuns, Dias (2020) age diretamente sobre princípios epistemológicos e empíricos do ato de espectatorialidade. Narrativamente, o filme não poderia ser mais simples: a sinopse de duas frases que se encontra por aí basicamente resume a totalidade da história. Há uma cena de planos longos em que um personagem realiza tarefas de casa – lavando a salada e descascando legumes – à qual é impossível assistir sem pensar em Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman. Em muitos sentidos, não é por acaso, porque em Dias, assim como também muito se falou do cinema de Chantal, “nada acontece”.

Levada literalmente, é claro que a expressão é uma falácia autoevidente, mas o seu teor pejorativo parte não de um lugar genérico, mas específico: é uma resposta de uma espectatorialidade arraigada sobre um modelo narrativo institucionalizado que atravessa a história do cinema americano. A questão, portanto, não é exatamente que “nada acontece”, mas que não acontece nada do que deveria acontecer. O ponto de ruptura está na noção de que, para Chantal – tal como para Tsai Ming-liang –, a maneira com que um conjunto gestual se dilata no tempo é definidora da matéria histórica e dramática que articula os significados de um corpo no mundo. Para a narratividade de um cinema americano informado por “escolas de roteiro”, drama e história são problemas de estrutura narrativa mais do que de imagem; são questões de encadeamento de causa e consequência entre blocos narrativos mais do que de desenvolvimento da ação no plano.

A aproximação entre Dias e Jeanne Dielman não pretende assumir que os significados da dilatação entre os dois filmes são os mesmos, já que a viscosidade dos dias para Tsai, por exemplo, é muito mais melancólica do que opressiva – como é o caso para Chantal. O sentido da comparação está em como, apesar dessas e outras diferenças, ambos estão similarmente localizados diante de uma certa expectativa narrativa e estética. Tendo estabelecido esse parti pris é preciso, no entanto, investigar a especificidade de Dias em relação a esse terreno, caso contrário o argumento se bastaria indistintamente para qualquer filme de planos longos sem amarrações convencionais de roteiro.

Se o filme de Chantal parece sempre reconhecer tacitamente – e lutar contra – a força gravitacional dessa normatividade narrativa, temporal e estética na epiderme de suas imagens, de tal modo que a densidade atmosférica que transcorre Jeanne Dielman sob a chave dos seus conflitos de gênero é também uma metáfora sobre os regimes de visibilidade implicados nos instrumentos de um fazer cinema hegemônico, fazendo com que o filme ocupe ativamente o lugar da disputa, Dias, por outro lado, é uma espécie de travessia sobre o pathos da solidão contemporânea das cidades, que existe em uma dimensão estética alternativa, pós-narrativa – se pensada em termos convencionais. Enquanto para Chantal importava tensionar as estruturas simbólicas hegemônicas atacando suas fronteiras, para Tsai o movimento está mais ligado à criação de um arsenal estético autônomo – ou seja, cujos significados não se organizem como terceiros da oposição entre duas estruturas simbólicas, mas nos seus próprios termos.

Assistir a Jeanne Dielman é como assistir a dois filmes em um: em primeiro plano, aquele no qual “nada acontece”, e em segundo plano, o regime de visibilidade no qual todos aqueles filmes em que as coisas “acontecem” estão sublimados no reconhecimento de que o que existe entre as suas elipses é a matéria mesma de construção do filme de Chantal. No caso de Dias, temos o inverso: o filme é como uma ilha esquecida pelo tempo cujos referentes simbólicos naufragaram em terras distantes e agora o que resta é o mergulho nas águas profundas de uma cosmologia soberana que avança sobre si mesma a todo vapor. Em outras palavras, é um filme de imanência radical do plano: só o que importa, só o que há, é o que está na superfície da imagem. É um filme sobre o qual não se poderia dizer que algo está à flor da pele, porque a fisicalidade não é circunstancial: à flor da pele é um ser e não um estar, é uma condição de existência das suas imagens.

Em Dias, os elementos que compõem uma imagem cinematográfica – corpos, espaços, objetos, cores, movimento – não formam uma estrutura de representação, não reportam a uma realidade exterior os seus significados. O filme é uma experiência estética que testa os limites do exercício sensório que se dá entre um corpo e uma imagem no ato da espectatorialidade, e é aí que precisamos retomar a questão inicial do texto. A cena da massagem no hotel, ponto-chave, a partir do qual tudo parece orbitar ao redor, lida intensamente com diversas camadas da experiência estética. Ela tem um efeito hipnótico que dialoga com o ASMR – no sentido de suscitar uma atração sensorial pela audiovisualidade. A cena também leva ao paroxismo a elaboração de intimidade e tesão como elementos estéticos, a partir da qual, inclusive, faz-se uma relação de expectativa e catarse que é inerente à própria composição do plano, com uma masturbação em extracampo que dobra a aposta na economia de atenção que se pretende gerar sobre a superfície.

Se a relação entre excitação e gozo é a de um processo constante de estímulo rumo a um extremo de prazer, a cena da massagem é uma tentativa de produção do gozo estético, ou, dito de outro modo, como criar uma dimensão de fisicalidade, a partir de ferramentas audiovisuais, que se aproxime em intensidade o máximo possível de uma experiência sexual. Por isso, a espectatorialidade é um problema importante para Dias: não é sobre ver um filme, mas sobre literalizar a premissa de experienciar um filme, como um ato de corpo e alma. A imagem cinematográfica como esse evento que se faz no modo com que um corpo sente o atravessamento de uma audiovisualidade.

A cena em si é de uma potência acachapante, porém o que verdadeiramente define a sua força é o contraste com todas as outras que existem ao seu redor: imagens geladas, cheias de espaços negativos no plano e afundadas em sentimentos de solidão. Dias é como um grande experimento kuleshoviano de dilatação. Da mesma maneira que, para Kuleshov, o objetivo era compreender os resultados durante um processo de montagem entre A, B e A no qual A apareceria reconfigurado a partir do contato com B – ainda que se tratasse da mesma imagem –, para Tsai, é como se a cena da massagem no hotel fosse B e todo o resto fosse A.

Por mais que, ao pé da letra, não se trate da mesma imagem relida por uma nova chave de significação, a possibilidade de aproximação com Kuleshov está dada porque a diferença de narratividade entre as imagens, entre o que está acontecendo em cada uma, se o personagem está andando na rua, observando a paisagem ou fazendo tarefas de casa é bem menos decisiva do que as experiências sensíveis que elas conseguem produzir a partir da solidão. No fim das contas, outras situações poderiam estar sendo encenadas. A coerência entre elas é estética mais do que narrativa. O fluxo e a continuidade que devem ser gerados são da ordem das sensações, dos sentimentos, das sensorialidades.

O que faz a cena da massagem no hotel agir sobre o filme como um deslocamento de placas tectônicas não está ligado a processos de identificação e construção de personagem, ao contraste com lógicas narrativas de solidão, situações específicas de melancolia, e sim o contraste com mais de uma hora de imagens plasticamente pensadas para alimentar um certo estado de espírito, uma certa paisagem emocional, um certo terreno de sensações. É emblemático, inclusive, que o primeiro e único contato entre os personagens se dê também plástica e não narrativamente. Vemos Kang (Lee Kang-sheng) sentado na cama do hotel, corta e no plano seguinte já estamos na massagem. Não há cena de contato prévio, ligação, não há contextualização narrativa alguma. A causalidade é secundária em comparação à imanência do encontro entre dois corpos no plano.

Ao fim do filme, os dois retornam à solidão de uma rotina que vai permanecer inalterada. Na prática, o encontro não muda nada na vida deles, é uma mesma imagem que se repete, mas os significados dessa melancolia tornam-se drasticamente distintos. Enquanto imagem vista, mero registro de espaços, corpos e gestos, é uma repetição. Tal como em Kuleshov, a reconfiguração da imagem não é visível, mas sensível. A caixa de música, presente que se torna um pequeno artefato de transcendência do encontro, dá um lastro no tempo para uma intimidade efêmera que vai para sempre ressignificar a penitência de vidas que um dia viveram o paraíso, e que agora estão fadadas a revivê-lo como miragem para o resto dos dias.

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