Por Chico Fireman
Um voice over didático e cadenciado sugere, ao lado de imagens funcionais filmadas em digital, que veremos um daqueles documentários de observação sobre o funcionamento de algum sistema industrial, gênero muito comum nos dias de hoje. Em detalhes, o narrador explica a mecânica de uma fábrica onde o bagaço de uma fruta típica do Sudeste Asiático é separado da polpa e reprocessado algumas vezes para que se extraia o suco. Mas “Mangostão”, média-metragem batizado com o nome deste fruto, tem outras ambições e uma delas é provocar estranhamento.
A mesma voz doce e professoral nos apresenta Earth, um homem que volta, depois de muitos anos, para sua cidade natal e reencontra a irmã, que administra a fábrica. Após introduzi-lo, o narrador passa a, deixando claro seu papel como condutor da história, interpretá-lo. É só o começo de uma série de “interferências” com que o diretor Tulapop Saenjaroen subverte a estrutura inicial. O registro documental vai se alternando com uma investigação psicológica de Earth. E mesmo esse registro se desdobra quando a narração, a princípio tão oficial, passa a elencar as falhas das máquinas da fábrica.
Earth, para o narrador, é como se fosse uma destas falha. Ele suspeita de que seu retorno não é apenas uma visita, contrapondo as visões diferentes que os irmãos têm de mundo. Os registros mudam, a mistura o documentário com a ficção se acentua, o protagonista de poucas palavras se opõe a um narrador com muitas ideias e tudo isso alimenta uma atmosfera de mistério que contrasta com o tom um bocado melódico da narrativa. O filme adota um caminho mais introspectivo e menos palpável quando Earth se refugia no hobby antigo de criar histórias com personagens violentos que insinuam os sentimentos que tem por sua família.
Tanto a presença de um narrador quanto a decisão do protagonista de virar escritor, que ainda reverbera em outra decisão parecida na trama, indicam que, mais que contar uma história, Tulapop Saenjaroen quer falar sobre contar histórias. E nesta pequena joia chamada “Mangostão”, ele faz isso reprocessando memórias, rancores e a própria lógica da estrutura que propõe para mergulhar e transformar os tecidos desta narrativa.