Um outro destino para o tempo em O sacrifício, de Tarkovski

Por Chico Torres

“Através da imagem mantém-se uma consciência do infinito: o eterno dentro do finito, o espiritual no interior da matéria, a inexaurível forma dada”

(Tarkovski, Esculpir o tempo)

(imagem de abertura)

Questões sobre destruição, ruína e catástrofe são constantes na obra de Tarkovski. Como bem apontou Adalberto Müller, em artigo para a revista Cult: “A destruição e a catástrofe são temas centrais no pensamento de Tarkovski, constituem uma de suas ambiências fundamentais: a destruição da inocência e da infância de Ivan; a destruição da arte em Rublev; a destruição do planeta Solaris; a destruição da Zona em Stalker; a destruição da fé em Nostalgia; a destruição do nosso próprio planeta em O sacrifício”.

Trago aqui algumas reflexões sobre o tempo no sentido histórico e, mais especificamente, sobre alterações de padrões comportamentais que podem ser concebidos também sob uma mudança (muitas vezes radical) na percepção do tempo e da história. Irresponsavelmente, ponho em diálogo algumas frentes filosóficas antagônicas, como é o caso de Santo Agostinho e Nietzsche. Também estabeleço uma conversa entre Walter Benjamin e Tarkovski, além de trazer algumas concepções sobre a filosofia da história. O que pretendo aqui, através de Tarkovski e da filosofia, é pensar novos modos de vida que podem surgir através de uma outra vivência do tempo histórico e, por que não, subjetivo.

Na Grécia Antiga, o tempo não era concebido de modo linear. Havia uma concepção cosmológica que fazia com que os gregos definissem o Universo (Cosmos) como um processo fechado e interdependente. Essa tendência está muito presente na filosofia pré-socrática, mas temos ideia do seu alcance se observarmos, alguns séculos depois, a noção de causa em Aristóteles, em que todo o processo que constitui isso que chamamos de realidade funciona através de um logos que “orienta” as causas, em que todos os fenômenos estão conectados a uma “causa final” e necessária. No cristianismo e posteriormente no mundo moderno, representado especialmente pela filosofia de Kant, a noção linear do tempo se estabelece, assim como um ideal de progresso humano. O plano iluminista começa a cair por terra no século XIX, mas é no século XX que se desenvolvem críticas consistentes sobre todo o ideário progressista. No cinema, Tarkovski é um de seus críticos mais fervorosos.

Em O sacrifício, o tema do fim do mundo pode ser compreendido sob diversos aspectos, mas pelo menos dois deles me parecem evidentes: uma crítica à sociedade moderna e ao ideal de progresso propalado pela mesma, já que no filme o fim do mundo é produzido pelo avanço técnico responsável, entre tantos outros malefícios, pela bomba nuclear; e o rompimento com essa sociedade através de um ato de fé, um sacrifício de uma vida inteira realizado através da vivência de um milagre. Todos nós sabemos da ligação de Tarkovski com o cristianismo e o modo como ele transporta para a arte seus ideais de fé, moral, verdade e espiritualidade. Apesar disso, Tarkovski nunca produziu obras moralistas, mas sempre polissêmicas e carregadas de um misticismo que está além de algum tipo de cartilha religiosa institucional, pois o olhar místico leva, em última instância, para a salvação pela arte, pela imagem sacralizada.

No início do filme, Tarkovski apresenta o protagonista, Alexander, realizando uma tarefa curiosa: ele planta uma árvore morta, seca. O personagem nos fala, enquanto realiza a atividade, sobre uma fábula oriental na qual um homem faz o mesmo que ele: planta e cuida de uma árvore morta. Depois de três anos fazendo diariamente aquela mesma coisa, o homem da fábula nota que a árvore renasce e dá flores. Após contar essa anedota, Alexander afirma que uma simples ação repetida cotidianamente deve, de algum modo, mudar algo no mundo. Mudança não em sentido metafórico, mas uma mudança concreta, como se houvesse uma força holística a reger os fenômenos. Após essa cena, surge a figura enigmática do carteiro (Otto), que divaga junto a Alexander sobre o conceito nietzschiano do eterno retorno. Penso que toda essa cena inicial, filmada magistralmente em um único plano, abarca significativamente as intenções mais fundamentais do filme, já que todo o seu desenvolvimento terá como princípio esse conflito entre a ordem “natural” das coisas, em sua temporalidade linear, e um tempo que rompe com essa estrutura e transcende os limites do cotidiano.

(imagem I)

imagem II

Nietzsche, voltando seu pensamento para a filosofia pré-socrática, considera o universo não como infinito, mas como um sistema fechado, cíclico. Nessa perspectiva, todo o movimento, tudo o que existe e é experienciado, irá se repetir infinitamente, visto que as trocas entre os elementos são limitadas. Além de pensar o eterno retorno como a repetição das forças cósmicas, expressadas em qualquer aspecto da vida, há também a perspectiva de pensar esse conceito como uma nova forma de lidar com a temporalidade, expressa em condutas libertadoras e de desapego. É assim que Otto se expressa a Alexander, afirmando que o mesmo, apesar de todo o seu sucesso como intelectual, ainda é um ser angustiado e cheio de expectativas. Nietzsche possui uma noção na qual presente, passado e futuro são exterminadas em nome de uma vivência mais autêntica no agora (pois apenas o agora existe), em que o esquecimento, e não a memória, tem muito mais forças propulsoras de transformações efetivas. Ironicamente, a mudança parece vir da aceitação de um ciclo que se repete e, consequentemente, tal ideia deve gerar um esvaziamento libertador, quase um estoicismo.

Essa concepção corrobora com a filosofia amoral de Nietzsche e da sua transvaloração dos valores. Se tudo é troca infinita de forças (e nada mais do que isso), então todo o projeto humano calcado no ideal de progresso, evolução e superação precisa ser revisto, assim como todas as instituições, todos os conceitos básicos que constitui isso que chamamos de civilização, incluindo aqui o que entendemos por ciência, arte, técnica, história, etc. Em O sacrifício, a crítica ao progresso é evidente, mas Tarkovski faz também uma reflexão mais profunda sobre outra possibilidade de existência calcada na radicalização da compreensão de um rompimento com a marcha do progresso e das convenções sociais, que no filme se concretiza com o personagem incendiando a própria casa e “abandonando” a família, caindo em processo de enlouquecimento, evidentemente julgado por outrem. Em Agostinho, em suas reflexões sobre o tempo, ainda que se estabeleça um tipo de tempo cronológico, há uma belíssima consideração sobre o “eterno agora”, que seria o “tempo” de Deus, mais precisamente, a Eternidade que antecede qualquer tempo. A meu ver, o eterno retorno nietzschiano se assemelha com esse eterno agora agostiniano, mas a ambição de Nietzsche é muito maior: tirá-lo de Deus e torná-lo humano, ainda que o preço por isso seja alto demais. Não é em vão que Alexander toma atitudes extremas, como tantos outros personagens de Tarkovski que se sacrificaram em nome de uma vivência que “atingiu a transcendência”: basta pensarmos no Stalker e no personagem que incendeia a si mesmo em Nostalgia. A construção temporal de Tarkovski, exposta em sua obra cinematográfica e em seu livro Esculpir o tempo, revelam uma preocupação em capturar o instante em sua pureza, através de uma suspensão do tempo e seus entraves cotidianos. O ideal de Tarkovski é capturar na imagem a eternidade, o agora em sua singularidade, em busca de uma revelação mística através da contemplação do plano.

(imagem III)

Outro pensador, agora contemporâneo, também pensou sobre novas e radicais possibilidades de experiência através de reflexões sobre o tempo. Walter Benjamin, vinculado estreitamente ao aspecto fragmentário e ao poder das imagens e da ruína, cunhou o conceito de tempo-do-agora, nas famosas teses sobre o conceito de história. Uma proposta ousada que une messianismo judaico e marxismo. No judaísmo, esse tempo-do-agora seria uma interrupção do tempo concebido como homogêneo e vazio, para uma reestruturação da vida através de uma noção de redenção. No marxismo, essa interrupção e redenção não se dariam pela volta do Messias, mas pela atividade revolucionária que deve estar atenta as convulsões sociopolíticas provocadas pelo ideal de progresso. É famosa a imagem criada por Benjamin do anjo da história, em que é arrastado por todos os entulhos e ruínas que são o resultado da cultura que “progride” na medida em que acumula injustiças e exploração. Benjamin quer, portanto, acertar contas com o passado, vendo em uma reparação social uma nova maneira de estimular a emancipação humana. Mais uma vez a temporalidade convencional é colocada em cheque em nome de uma vida mais autêntica.

A atitude de Alexander me leva a pensar em semelhanças entre essa concepção de Benjamin e Tarkovski. Em ambos, há uma explícita crítica ao progresso e à técnica usada para fins nefastos. Se em Benjamin há um impulso revolucionário e ao mesmo tempo messiânico de interrupção da história e sua temporalidade tendenciosa, em Tarkovski, há o mesmo impulso, mas sempre manifestado na atitude isolada, deslocada da organização política e, portanto, oprimida e silenciada. O que se vê em Tarkovski é uma utopia que se concentra em apenas um sujeito e se expande, diante de nós, como sonho irrealizável, apenas presente na imagem artística. Se Benjamin acreditava em mudanças concretas, Tarkovski nos diz que é tarde demais, nos restando simplesmente contemplar aquilo que se perdeu.

Eterno retorno; eterno agora; tempo-do-agora; tempo cíclico e interrupção messiânica através da ação política e da arte, não são poucas as perspectivas lançadas por artistas e pensadores para propor novos e desafiadores olhares sobre a cultura ocidental. O sacrifício, com Alexander ateando fogo em sua própria casa, abrindo mão de tudo diante de um novo e redentor significado da vida, acaba por representar, no cinema, uma das mais potentes críticas a uma sociedade há muito adoecida pelo ritmo de Kronos. Ao esculpir outro destino para o tempo, Tarkovski nos mostra o quanto precisamos morrer para que surja, mesmo que em sonho, uma nova vida.

Referências:

Ambiências do sagrado (2017), de Adalberto Müller.

Confissões (2011), de Santo Agostinho;

Assim falou Zaratustra (2011), de Friederich Nietzsche;

Sobre o conceito de história (2012), de Walter Benjamin ;

Esculpir o tempo (2010), de Andrei Tarkovski.

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