Por Natália Reis
And those who expected lightning and thunder
Are disappointed.
And those who expected signs and archangels’ trumps
Do not believe it is happening now.
As long as the sun and the moon are above,
As long as the bumblebee visits a rose,
As long as rosy infants are born
No one believes it is happening now.
(A Song on the End of the World, CZESLAW MILOSZ)
Phillipe Dubois, teórico que, entre outras coisas, percorreu as possibilidades do vídeo enquanto imagem e dispositivo, fala de um “lugar dilacerado na história” ocupado pelo formato, condicionador de uma imagem transitória, que pende entre o cinema e o digital: é como “um banco de areia, entre dois rios, que correntes contrárias vêm apagar progressiva e rapidamente”, “um parêntese”, “um interstício ou um intervalo”, “uma ilha destinada a submergir”. Nesse não-lugar da analogia de Dubois, uma figura antes difusa entra em foco: num motel de beira de estrada, um homem branco de meia-idade espreita através das cortinas o céu escurecer e ser preenchido por nuvens carregadas, tv e rádio ligados anunciando a tempestade iminente, dias de espera. Em Weather Diary 1 (1986), primeiro filme da extensa série de “diários climáticos” de George Kuchar, a imagem ilhada é a esperança nunca concretizada de testemunhar um fenômeno meteorológico de magnitude e captá-lo na câmera de vídeo.
Por quase trinta anos, Kuchar manteve as idas periódicas ao estado de Oklahoma, coração da região conhecida como Tornado Alley (“alameda dos tornados”), no intuito de observar o clima e suas reverberações. Primeiramente instalou-se numa YMCA, associação para jovens cristãos na cidade de Oklahoma, e posteriormente no pequeno município de El Reno, onde realizou em 1977, Wild Night in El Reno, curta de pouco mais de 5 minutos de duração e de certa forma gênese dos Weather Diaries. O interesse por meteorologia nutrido desde a juventude – para além de um fascínio pela “tapeçaria colorida do céu que pairava sobre os cortiços de onde morava” como descreveria mais tarde, o diretor também já havia trabalhado fazendo mapas climáticos para o noticiário local – vem ao encontro de um potencial criador igualmente prematuro: desde os 12 anos de idade, George e o irmão gêmeo Mike produziam filmes em super-8 que replicavam, à sua maneira, os melodramas comerciais hollywoodianos e filmes B de terror consumidos por sua família de classe trabalhadora do Bronx. Com a naturalização das câmeras de vídeo nos anos 80, o fluxo (sempre considerável) das produções é amplificado, a comodidade e o baixo custo somados a uma estética por vezes considerada de filmes caseiros e/ou pouco artísticos, se tornam material basilar para os trabalhos posteriores de George Kuchar, incluindo seus diários.
O filme-catástrofe como gênero, na sua essência, conclama pelo esforço coletivo em prol de um bem maior, seja o cumprimento de uma missão (Twister, 1996) ou a própria salvação (O dia depois de amanhã, 2004; 2012, 2009). A fuga e o deslocamento também figuram como forças motoras do gesto de sobrevivência, uma vez que a imobilidade significaria o fim (afinal um fenômeno natural só se torna catastrófico no momento que irrompe no cenário urbano, humanizado). O que Kuchar faz nos seus Weather Diaries, e sobretudo no primeiro filme, é justamente subverter essas abordagens partindo da calamidade como rotina solitária, uma espera permeada pelas previsões e notícias que chegam do mundo externo através do rádio e da tv, e mediada pela paisagem desgastada na janela do quarto no Motel Reno. Uma forma de existência no porvir.
Em Gummo (1997), de Harmony Korine, crianças e adolescentes perambulam entre as ruínas de uma cidade devastada após a passagem de um furacão. Se o filme é por vezes tratado como apocalíptico, é possível que seja menos pela destruição causada pelo tornado e mais pelo que ela escancara: uma classe de pessoas fragilizadas, subnutridas e semialfabetizadas, cuja condição de vida precária numa área de risco a coloca sempre perto do fim. Numa mesma chave em determinado momento de Weather Diary 1, Kuchar conversa com uma mulher de traços indígenas sobre um alerta de tempestade. A mulher é filmada de costas olhando para o céu com preocupação, e é questionada se teria algum lugar onde se abrigar. A resposta – ela mora em um trailer estacionado perto dali – vem com palavras apaziguadoras (e no fundo temerosas) de ambos interlocutores de que, afinal, o evento não deve ser tão avassalador assim. Mais tarde, enquanto o céu parece desabar, o diretor se lembra da breve companhia
O medo e o desejo estão ali, mas o que transborda em Weather Diary 1 é o tempo e as transformações suscitadas na natureza (nos elementos humanos e não-humanos) e no corpo do diretor. Com o decorrer dos dias, poças e insetos se acumulam, quedas de energia se tornam frequentes, aparelhos eletrodomésticos começam a ranger, a pia entope e brotoejas se espalham sobre a pele de Kuchar. Lá fora, rostos conhecidos dizem adeus, algumas crianças brincam em um córrego poluído e os cães rondam animais mortos. A montagem, realizada na própria câmera, é quase toda composta por inserts, por meio de um método que consiste em retomar cenas antes gravadas e criar e simultaneamente preencher fissuras com novas cenas, novos comentários. Nesse processo, o que se experiencia é uma cronologia que obedece apenas à própria ordenação, como o fluxo da programação da tv que Kuchar goteja pelo filme inteiro, ou o vortex que escapa da descarga do vaso sanitário, no ralo da pia e no café mexido, sucedendo um ciclo de deterioração do universo pessoal do diretor.
Nos últimos filmes da série, o motel habitualmente ocupado por Kuchar é transformado em casa de repouso – o que não o impede de continuar frequentando e muito menos de se tornar o único hóspede posto em um quarto inalterado enquanto reformam tudo ao redor. Essa imagem talvez seja a sumarização do lugar do realizador nos seus diários: um “storm squatter”[1] (se dizia) em oposição aos storm chasers, um ponto fixo num estado das coisas retido na incerteza. Se a câmera, como afirmava, era o que o protegia no vislumbre do mundo que parecia ruir sob a ameaça de tempestade, ela também é ancoragem da sua presença, uma alternativa preciosa para tempos nos quais só é possível olhar pelas telas e janelas.
Referências
Dubois, P. (2014). Cinema, vídeo, godard. Editora Cosac Naify.
MacDonald, S., & Kuchar, G. (1985). George Kuchar: An Interview. Film Quarterly, 2-15.
Ziemons, U. (2014). Aufzeichnungen eines Storm Squatters: George Kuchars Weather Diaries (Vol. 15). transcript Verlag.
[1] Algo como “sedentário de tempestades”