Por Flavio C. von Sperling
Seria frágil uma análise de Godzilla (Gojira, 1954, Ishirô Honda) que não levasse em conta o contexto de sua recepção no Japão. A fita foi lançada apenas nove anos depois das explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki e do bombardeio de Tóquio em março de 1945 – que destruiu quase metade da cidade, ceifou mais de 100 mil vidas japonesas e alijou milhões de suas casas, apenas dois anos após o fim da ocupação estadunidense no Japão, marcada por estupros e pilhagens, e em pleno preamar dos testes nucleares no Pacífico. Em março de 1954, o barco pesqueiro Lucky Dragon N. 5 foi atingido por poeira radioativa resultante da detonação da bomba estadunidense Castle Bravo, à época a mais potente explosão causada por seres humanos (um erro de cálculo previa 6 megatoneladas, a explosão liberou 15). Toda a tripulação foi contaminada e os atuns pescados chegaram aos mercados de Tóquio. Os Estados Unidos, embora negassem os riscos de consumo destes peixes, suspenderam as importações de atuns japoneses. Concluiu-se que mais de 800 outras embarcações japonesas foram expostas à radiação da explosão e, entre março e dezembro de 1954, as autoridades destruíram dezenas de toneladas de peixes radioativos. É neste contexto apocalíptico que o filme foi lançado em outubro de 1954, um mês após a morte do operador de rádio do Lucky Dragon N. 5, e sua primeira cena faz alusão explícita ao incidente (que seria referenciado em dezenas de outros filmes, e é acontecimento central em pelo menos dois – Daigo Fukuryu-Maru, 1959, de Kaneto Shindô, e O monstro da bomba H, 1958, de Ishirô Honda). Em Godzilla, fatores extra e intra-fílmicos se emaranham de tal maneira que se tornam indissociáveis.
A década de 1950, considerada a era de ouro da ficção científica no cinema, já havia visto o medo e a angústia atômica nas telas, ora de maneira metafórica, ora literal. Embora inspirado em alguns filmes estadunidenses, especialmente O monstro do mar (The beast from 20,000 fathoms, 1953, de Eugène Lourié), Godzilla carrega uma pungência única no cinema.
Godzilla, encarnação do apocalipse nuclear que para o Japão parecia iminente – se não em curso constante -, transcende a metáfora, e torna-se também símbolo de uma identidade nacional retalhada. O público ainda marcado pela guerra viu-se na pele do monstro, uma pele que, como a de muitos espectadores ali, carrega cicatrizes, queimaduras, deformidades advindas da violência nuclear. Godzilla, ao mesmo tempo em que amedronta, é passível de empatia. Essa ambivalência, esse caráter dual de vítima e algoz, que é da própria ontologia dos monstros, encontra sua potência máxima em Godzilla, talvez comparável apenas ao monstro de Frankenstein, e está impressa inclusive no seu rugido metálico, carregado de dor e raiva. O rugido do monstro, manifestação sonora de um páthos rudimentar, só é menos aterrorizante que seu silêncio, o de uma força descomunal, impassível, inconsciente da destruição que causa. São numerosos os relatos que fazem menção ao silêncio sepulcral que sucede o estouro de uma bomba atômica.
Godzilla é o mais sombrio dos filmes de ficção científica. Apesar do filme ter seu arcabouço baseado na fantasia e de sua implausibilidade científica (tanto do monstro quanto da arma que o elimina), caros ao gênero, Shindô, veterano da Segunda Guerra, imprime na forma do filme um realismo quase documental, praticamente sem paralelo no gênero até então, distanciando-o de seus contemporâneos estadunidenses e aproximando-o de filmes como Hiroshima (1953, Hideo Sekigawa) e documentários de guerra. As cenas noturnas de destruição parecem filmadas in loco na noite de 9 de março de 1945 – a noite do famigerado bombardeio de Tóquio. As cenas de hospital de Godzilla e, por exemplo, do assustadoramente realista Catástrofe nuclear (Threads, 1984, de Mick Jackson), são mais próximas do que a distância de três décadas entre elas poderia sugerir. Há relatos de que, durante a cena na qual Godzilla destrói o Toho Theater, parte dos espectadores presentes no cinema real tentou fugir da sala, o que nos lembra a anedota do público amedrontado pela vinda do trem dos Lumière, quando o cinema ainda era coisa nova.
Godzilla é permeado por diversas relações de dualidade, desde a já mencionada ambivalência fulcral do monstro, até a de um Japão tradicional e um Japão moderno, encarnada no dilema de Emiko entre o casamento arranjado com Dr. Serizawa e sua paixão por Ogata. Uma das dualidades mais marcantes do filme é apresentada nas diferenças entre Dr. Serizawa e Dr. Yamane. Este, paleontólogo, representa uma aproximação mais humanista da ciência. Dr. Yamane insiste que Godzilla não deve ser exterminado, mas estudado a fim de mitigar os efeitos oriundos da atividade nuclear. Na última cena do filme, é ele quem nos diz que, caso os testes nucleares não sejam interrompidos, em breve outro Godzilla surgirá, nos admoestando num final típico das cautionary tales – narrativas que nos servem de alerta ou reprimenda. Dr. Serizawa, uma encarnação do trauma da guerra, considera-se mais monstruoso que Godzilla, uma vez que ele criou uma arma que, em mãos erradas, seguramente seria usada para destruição em massa. Serizawa, veterano da guerra, mutilado, com um olho arrancado pela invenção de algum outro cientista, recusa-se veementemente a utilizar o Destruidor de Oxigênio contra Godzilla. No entanto, após ver o rastro de destruição deixado pelo monstro e um coral de garotas cantando em luto na televisão, ele decide destruir sua pesquisa e utilizar o Destruidor de Oxigênio apenas uma vez, para por fim às agruras sofridas pelo seu povo. A cena do coral, das mais poderosas do filme, é uma quase mística evocação de um espírito coletivo japonês que marca o ponto de virada para Dr. Serizawa, a personagem humana mais emblemática de toda a franquia. Serizawa sabe que ele deve morrer junto com sua criação. É seu dever moral sacrificar-se e levar seu conhecimento de potencial destrutivo para o túmulo. Nos filmes de ficção científica, é comum os cientistas morrerem vítimas de sua própria criação, mas o suicídio determinado de Serizawa destaca-se entre os filmes da época. Em The phantom from 10,000 leagues (1955, de Dan Milner), por exemplo, o cientista mergulha no mar a fim de destruir a arma que criara (numa cena possivelmente inspirada no final de Godzilla) e acaba morto, mas não por algum gesto suicida. O monstro ressurge e o agarra, impedindo-o de fugir da explosão – monstrum ex machina. É possível, nesta comparação, identificar traços culturais diferentes entre os Estados Unidos e o Japão que se evidenciam nestes filmes.
Embora o monstro seja derrotado e haja algum alívio momentâneo, não há nenhum clima de vitória no final de Godzilla. Não há celebração, ao contrário da maioria dos filmes de ficção científica estadunidenses da época. A necessária morte de Godzilla é também a morte de uma vítima, e os testes nucleares, souvenirs da tara bélica americana, continuam acontecendo ali naquele mesmo mar onde estão as personagens.
Esta ambivalência vítima x algoz de Godzilla praticamente se perde nos demais filmes da franquia, nos quais, a cada um deles, o monstro oscila mais próximo dos extremos desse espectro – embora na maior parte dos filmes ele seja tido como um herói nacional, protetor do Japão, uma figura quase paternal (algo que permanece até hoje na figura de Godzilla como ícone da cultura popular japonesa). Gosto de pensar que estes filmes (1955-2004) formam uma espécie de necrológio em painel do monstro original de 1954, onde a cada hora ele é evocado de uma forma diferente, destacando diferentes características suas.
Em Shin Godzilla (2016, Hideaki Anno e Shinji Higuchi), contudo, há uma forte reaproximação do monstro com sua versão original. É o único dos filmes, depois do primeiro, no qual o Japão ainda não conhece Godzilla, o que faz do filme mais uma refeitura do original do que realmente uma sequência.
Shin Godzilla tem o mesmo tom austero do primeiro filme e resgata vários atributos dele. Após décadas, Godzilla aparece aqui sozinho novamente, sem os demais monstros que povoavam as telas em quase todos os filmes depois de 1955 (a única exceção sendo O retorno de Godzilla, de 1984, pensado como uma continuação do filme de 1954). O realismo do primeiro Godzilla também volta e é marcante o uso de diferentes dispositivos e meios de intermediação de imagens empregados (celulares, câmeras de segurança, computadores, etc). Aqui temos de volta a ”câmera à altura do homem”, enquanto os demais filmes (exceto o primeiro) privilegiavam a “câmera à altura do monstro”.
O trauma coletivo do tsunami de 2011 e do acidente nuclear de Fukushima se soma às feridas ainda abertas da Segunda Guerra e à dominação estadunidense que se articula de outra maneira, muda de forma, mas se perpetua sobre o Japão. “O Japão do pós-guerra é um estado tributário”, comenta uma personagem. “O pós-guerra se estende para sempre”, arremata outra. Pouco mudou no estado de espírito do povo japonês desde o contexto do primeiro filme para Shin Godzilla.
O filme apresenta uma espécie de protagonismo em painel. É o coletivo e o processo de cooperação que fazem às vezes de protagonista. Após o surgimento do monstro, o poder público é incapaz de oferecer resposta imediata. Não se sabe qual é o departamento responsável pelo inédito aparecimento de um monstro. Especialistas são reticentes em dar diagnósticos e indicar medidas a serem tomadas, com medo de ferir suas reputações e toda determinação passa por três ou quatro pessoas antes de ser posta em prática. Os centros de operação parecem um formigueiro desarticulado, nos planos gerais. Repetições enfadonhas de travellings em reuniões recheadas de desorientados homens velhos trajando ternos iguais sublinham a letargia do Estado. Novos rostos, funções, cargos, comitês e forças-tarefas aparecem a todo momento numa cacofonia que opera na chave da sátira (uma das reuniões é interrompida por uma cartela sobre tela preta que nos indica que fomos poupados de parte dela). Estes ministros, oficiais e funcionários públicos não são, no entanto, vilanizados hora nenhuma; são indivíduos que tentam colaborar para o bem comum, mas são travados pela burocracia do Estado e por alguma inaptidão. O princípio da colaboração é central em Shin Godzilla.
Um comitê paralelo, formado por párias, lobos solitários, nerds, hereges da academia, luta contra o tempo enquanto Godzilla destrói Tóquio e os EUA planejam soltar uma terceira bomba atômica sobre o Japão a fim de dar cabo ao monstro (e, obviamente, lucrar com a reconstrução da cidade). O comitê tem em mãos um enigmático mapa genético do monstro, deixado por um cientista desaparecido, que pode conter informações que levem a uma solução menos trágica do que a proposta pelo País da Liberdade. Este comitê representa uma crença na superioridade do pensamento científico sobre a violência bélica e a aniquilação. É interessante que a solução para decifrar o mapa genético se encontre na milenar arte japonesa do origami, aliando o conhecimento popular japonês ao saber científico e simbolizando um certo espírito nacional que o filme parece querer promover (vale notar que o integrante do grupo de outcasts que indica o origami como solução é representado por Shin’ya Tsukamoto, diretor de Tetsuo, Bullet ballet, entre outros).
Shin Godzilla é o único filme da franquia no qual o monstro muda de forma. Assim como o Japão no filme, ele também é obrigado a se adaptar a situações adversas. Em sua primeira aparição, de aparência anfíbia, ele se move de maneira caótica pelos rios de Tóquio, arrastando barcos, quebrando pontes e deixando um cenário de destruição muito semelhante ao que o mundo viu e o Japão sentiu após o tsunami de 2011. Quando Godzilla pisa (ou se arrasta) em terra, ele ainda não consegue suportar o próprio peso nas pernas e se debate entre os prédios convulsivamente, em evidente desespero. Seus olhos de peixe, esbugalhados e ainda sem pálpebras, reforçam sua agonia e, como acontece com o monstro de 54, temos franca empatia por ele. Quando Godzilla atinge sua forma terrestre, a rigidez de seu corpo e seus punhos contraídos parecem indicar uma excruciante e constante dor, assim como sua carne exposta, sua pele rasgada, seus dentes deformados – marcas da violência que o originou. É, na história de Godzilla, a representação mais devastadora do monstro como vítima dos pecados humanos.
As sequências externas, salvo as de ataques aéreos, geralmente privilegiam o ponto de vista humano, do nível do chão, exacerbando o aspecto colossal e horrífico do monstro. No entanto, vez ou outra temos uma mudança de perspectiva que nos apresenta um Godzilla diminuto, em planos abertíssimos, em aparente continência perante o cosmos. Estes planos, por sua vez, rimam em sua composição com outros recorrentes planos abertos de seres humanos pequenos e sozinhos em quadro – talvez o que nos distancie dos monstros seja apenas uma questão de escala.
“A humanidade deve coexistir com Godzilla”, diz uma personagem. O Godzilla congelado ao fim do filme, no meio de Tóquio, talvez seja a imagem mais marcante de Shin Godzilla; é o lembrete de um perigo latente, de natureza cíclica, que nunca será de fato extirpado – memória constante de que o apocalipse não acaba, mas vem em ondas, e é também um monumento de tributo ao Japão e ao viço de seu povo que sobrevive ao longo de uma história maculada por tragédias, de causas humanas e naturais; repetidos “fins do mundo”. Embora este não seja um filme exatamente otimista, ele fecha com a sensação de que se aprendeu algo com a tragédia de hoje, e exalta um espírito coletivo japonês que, embora não sem perdas, conseguiu, dessa vez, transpor suas adversidades. O Japão de Shin Godzilla é agora um país mais seguro de si.