À beira do abismo: Miracle Mile, de Steve De Jarnatt

Por João Pedro Faro

“Seria esse o objetivo do armagedom? Terminar com ambiguidades, acabar com qualquer dúvida.”

Ruído Branco, de Don Dellilo (trecho).

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Durante décadas, houve incerteza sobre qual seria a real conclusão da sísmica cena final de A morte num beijo (1955, Robert Aldrich). Uma das versões, a mais circulada, encerra o filme com o casal Ralph Meeker e Maximine Cooper presos na casa de praia onde uma bomba atômica acaba de ser acionada. A casa explode e o letreiro “The End” surge por cima da catástrofe nuclear. Uma segunda versão, redescoberta tardiamente, mostra Meeker e Cooper conseguindo fugir de dentro do local e assistindo à explosão caídos na areia. Os dois se beijam e o “The End” aparece na tela em um desfecho menos abrupto. Porém, a real diferença entre os dois finais não está entre a vida e a morte dos protagonistas. Afinal, a bomba atômica explodiu, o apocalipse é iminente e acontece em ambas as versões. Os amantes vão morrer de qualquer jeito. O que muda no segundo final é que Aldrich permite ao casal um último beijo desesperado antes do fim do mundo.

Miracle Mile (1988, Steve De Jarnatt) funciona como uma expansão do que foi proposto por Aldrich 30 anos antes: a iminência da fatalidade em uma última chance de entrega ao outro. O romance de paranoia nuclear que acompanha Harry (Anthony Edwards) noite adentro, tentando fugir com sua recém-conhecida amada Julie (Mare Winnigham) nos 70 minutos restantes antes da chegada dos mísseis soviéticos que apagarão Los Angeles do mapa, torna um ideal típico de paixão perfeita em um inevitável refúgio por uma morte menos solitária.

Em seu monólogo inicial, Harry esclarece que passou toda sua vida atrás de alguém como Julie. É um discurso de sentimentos fatalistas, da certeza de que encontrou uma companheira ideal. O que funciona, em um primeiro momento, como uma banalidade sentimental que preza pela estabilidade dos desejos, retorna posteriormente como a totalidade das impressões de um indivíduo que vê o fim da própria vida. Harry nunca desiste de tentar achar um meio de sair da cidade com Julie antes da chegada do míssil, mas a cada tentativa tudo parece estar mais próximo de acabar. É desse efeito de exaustão, de sobrevivência falida, que o romance vivido pelo casal vai se concretizando do jeito mais essencial: através da desesperança de que a vida possa continuar e sua intrínseca energia para consumir tudo que resta, no tempo que resta.

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Existe uma sensação totalizadora em Miracle Mile quando Jarnatt apresenta o último momento da vida na terra como um filme que corre em círculos. Harry passa grande parte da projeção perseguindo objetivos mínimos que acredita que possam salvá-los, sendo essa busca incessante por salvação cada vez mais desacreditada. Ele nem parece conseguir sair do mesmo quarteirão durante todo o tempo. Portanto, Miracle Mile acaba sendo a mais enérgica obra sobre melancolia de sua geração – tudo parece tão gritante, tão histérico e, ao mesmo tempo, tão inútil e tão impossível. Essa sensação culmina na sequência mais destrutiva do longa: Harry, descendo pelos esgotos e saindo pelo bueiro, sobe em cima de um carro em uma avenida, podendo ver as consequências totais que o anúncio televisivo do apocalipse trouxe à população. Carros se acumulam em um trânsito inconcebível, não sobra espaço no asfalto, tomado tanto pelos automóveis empilhados quanto por corpos que se esbarram, correm e gritam. Casais fazem sexo em frente às lojas, saqueadas e destruídas por uma multidão sem propósito de existência além do consumo final de tudo aquilo que está em sua frente. O fim do mundo não é triste, é apenas excessivo.

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Essa sequência pode ser também considerada a única resposta no cinema americano ao trânsito de Week-End à Francesa (1967, Jean-Luc Godard). Enquanto o armagedom godardiano é repleto de tédio, do esvaziamento intelectual na existência francesa, o grande apocalipse americano é constituído pela inexistência de limites entre o consumidor e o consumo, tudo em tela se devora, tudo em tela precisa ser associado, tomado para o indivíduo antes que não exista mais o que consumir ou quem consuma. Enquanto os burgueses de Godard definham até serem canibalizados pelos mais jovens, os personagens de Miracle Mile aproveitam o tempo que sobra para se comerem. Não à toa, o trânsito apocalíptico de Week-End acontece em uma sequência de 8 minutos, sem corte, enquanto o de Miracle Mile pertence a um plano de pouco mais de 30 segundos.

Nada tão certeiro quanto o responsável por um longa tão definidor ser Jarnatt, um diretor sem carreira, autor de uma só obra, que atualmente vive em sua casa no interior, ao lado de um bunker que ele mesmo construiu. Miracle Mile parece um expurgo de alguém sem muito mais a dizer, que, assim como seus personagens, apenas pôde aproveitar o pouco que tinha em mãos. Segundo o próprio Jarnatt, toda a ideia surgiu a partir de paranoias próprias sobre o seu estado presente, portanto é mais do que justo que um filme tão fechado em si mesmo possa querer ser tão totalizador sobre o estado de espírito de um humano em completo desespero com o tempo em que vive.

O anseio de Jarnatt por temas e ideias maiores do que o próprio filme (difícil pensar outra coisa de um longa que abre com uma narração de museu sobre o início da vida na terra) funciona pelo afunilamento, narrativo e visual, que Jarnatt atinge ao focar no casal de protagonistas. Enquanto tudo se encaixa para que a câmera só consiga enquadrar o rosto de Harry e Julie se encarando em desespero, recorda-se o aspecto clássico do romance de acaso que inicia a jornada dos dois. Nos minutos finais, que acompanham os amantes prestes a morrer, tão próximos que parecem um só, a carga de um universo gigantesco e caótico, exterior aos dois, mostra-se essencial para que haja a potência nos últimos close-ups do beijo antes da morte; justamente porque faz tudo parecer tão pequeno diante da necessidade daqueles rostos em encontrar-se fisicamente até os limites do próprio corpo. Não há como ficar sozinho, não há como não querer ao outro quando tudo está para sumir.

A única forma que Jarnatt encontra para que qualquer ideal romântico exista naquele espaço e naquele tempo, do consumo banalizado como único motivo de existência, é que ele aconteça pelos meios mais primitivos da necessidade de se ter alguém próximo enquanto aguarda o juízo final. Harry e Julie são apresentados como o último casal da humanidade, unindo-se cada vez mais enquanto chega o fim do mundo. Simplesmente porque não resta fuga, não resta sobrevivência, resta apenas o que está ao seu alcance. No caso, resta a Harry estar com Julie, e resta à Julie estar com Harry. São pessoas com sentimentos, fruto de um desespero, como quaisquer outras, porém contempladas pela troca genuína de necessidades mútuas enquanto afundam para tornarem-se fósseis. O acaso do encontro perfeito só é possível às vésperas do colapso da terra, e só é completo quando tudo acaba.

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