Por João Lucas Pedrosa
Discorrer sobre Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, envolve inevitavelmente discorrer sobre a permanência (e a derrocada) de um sistema que constitui os alicerces do filme. Um sistema, sobretudo, de trabalho. Segundo a Física, o trabalho existe quando uma força exercida sobre um corpo gera o seu deslocamento. A força exercida durante esse deslocamento é a que conhecemos por “cinética”, cuja raiz etimológica é a mesma de “cinema” (kinema, “movimento”; kinein, “mover, deslocar”). Tratar de cinema é, portanto, tratar do movimento, desse deslocamento cujo trabalho aparece como fundamento-motor, como a força que faz mover. Essa força pode tratar-se da vida mesma que passa pelo ser, coisa ou lugar captado pela lente, como pode também tratar-se da força mecânica da câmera que registra os efeitos da força misteriosa primeira, e a obra fílmica surge primordialmente como produto do choque entre essas duas forças.
Em filmes como Um Homem Com Uma Câmera (1929) pode ser estabelecido um preciso contraponto estrutural e histórico a Jeanne Dielman. Em meio à exaltação da industrialização soviética e da consequente articulação entre homem e máquina (como aponta o título de sua obra), Dziga Vertov desenha em cerca de uma hora o funcionamento do dia de uma cidade, guiado pelo percurso de um cinegrafista que registra cidadãos em trabalho e/ou atividades rotineiras, máquinas e construções. A montagem estabelece entre os componentes uma harmonia operacional, como células de um grande organismo, que é a metrópole. Quando os cidadãos repousam, toda a cidade o faz, e a grandiosa geometria dos edifícios reflete o repouso dos corpos dormentes na cama, nos bancos da rua. O despertar é igualmente compartilhado e, numa das sequências iniciais, o enquadramento da chegada de um trem é justaposto a planos-detalhe da agitação de uma moça na cama de sua casa, que eventualmente desperta com o balançar do plano anterior. Os dois eventos tomam lugar em diferentes espaços, mas a edição permite o agito contagiar um espaço indeterminadamente distante. A edição estabelece uma ligação metafísica entre homem e máquina. O que os une é a força do movimento, sendo o filme o campo dessa troca sinérgica.
A metalinguagem é muito presente em Um Homem Com Uma Câmera e associa o trabalho cinematográfico-criativo aos demais: o filmar e o editar não são diferentes do dirigir caminhões, do lavar roupas ou do costurar (ação, esta, justaposta com o “cerzir” da montadora). O fazer cinema faz parte do fazer a cidade,
faz parte da atividade coletiva que constitui a metrópole mesma. As máquinas trabalham para as pessoas que para elas trabalham (por isso as cadeiras do teatro abrem-se sozinhas para a acomodação dos espectadores que chegam na abertura do filme) e daí se dá o funcionamento coletivo do organismo comunitário soviético. O trabalho funciona aqui como cinética combustível do mundo, como energia vital de um espaço do operariado, que funciona pela e para a operação laboral. Eis a construção da União Soviética como um grande corpo-nação, em que o labor é a entidade que rege o mundo.
Se a obra prima de Akerman e a obra prima de Vertov funcionam como exemplares opostos, é principalmente por serem oriundos de momentos e motivações histórico-estéticas diametralmente diferentes. Na União Soviética de 1929, Vertov procurava desenvolver um cinema independente das demais artes, livre do roteiro e da noção de narrativa. Seu projeto envolvia registrar principalmente acontecimentos ao invés de encenações (salvo exceções como a moça acordando), e ressaltar, dentro da obra, o artifício cinematográfico, lembrando todo o tempo que estamos assistindo a fragmentos deliberadamente ligados, ao que registrou uma câmera, (articulando a emancipação da sétima arte a ambos o entusiasmo construtivista da época e a exaltação operarial da URSS leninista). Já Akerman, na Bélgica de 1975, influenciada pelo movimento feminista e por um crescente ideário da emancipação individual da mulher, trata não do sistema coletivo de trabalho, mas de um microcosmo laboral invisibilizado por séculos de costume: o doméstico, ao qual associará a escravização do corpo feminino. Ela se apropriará dos acontecimentos para criar uma diegese narrativa profundamente imersiva, reduzindo as ações ao mais bruto e banal pela duração quase absoluta do filme.
Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles acompanha três dias na vida da protagonista que dá nome ao filme, quase todo passado dentro da casa cujo endereço também constitui o título (mulher e casa são nele cooptados como homem e câmera em Vertov). Os dias são preenchidos por atividades domésticas: fazer a cama, cozinhar as batatas, botar a mesa, servir a janta, tirar a mesa, fazer a cama do filho. As ações são registradas em tomadas estáticas, geométricas, com profundidade de campo e na integralidade de sua duração, intervaladas por espaços vazios que precedem e sucedem a entrada, ação e saída de Jeanne em cena. Ela se prostitui a um homem por dia, ação que é elipsada: o enquadramento corta seu rosto do queixo para cima, ela pega o casaco do cliente na sala e o pendura na parede, acompanha-o até seu quarto no fundo do corredor e fecha a porta. Um jump cut que baixa as luzes do cenário sugere um lapso temporal no qual teria acontecido o programa. Mesmo as elipses são posicionadas estrategicamente no intuito de manter a sensação estagnada da rotina da personagem ao preservar a duração integral de cada atividade doméstica. Ivone Margulies, em seu capítulo sobre o filme no livro “Nada Acontece”, associa essa escolha estética a uma descrição cumulativa
inspirada na literatura hiperrealista: a dinâmica dos cortes entre longos blocos de ação funcionam como conjunções aditivas, em que ações são enumeradas e empilhadas, e delas é bloqueada qualquer dimensão simbólica ou evasão metafísica. O aqui e agora da rotina de Jeanne é tudo o que há em seu amontoado alienante de tarefas.
Segundo também ressalta Marguiles, é muito caro a Akerman o movimento do cinema estrutural nos EUA dos anos 1960 e seu projeto de centralizar a forma do filme, no qual a narrativa tem importância marginal. Neles, um objetivo formal específico guia a obra (em exemplos mais claros, como em Wavelength (1967) um lento zoom in de mais de 40 minutos, ou em Back and Forth (1969) o movimento de ida e volta da câmera, ambos de Michael Snow), de forma que a encenação narrativa surge de modo fragmentário, no momento em que a câmera, no meio de seu obstinado dispositivo, acabou captando. Voltamos à dupla do início do texto: a força da vida que move o evento prefílmico e a força mecânica que move a câmera que o registra. No cinema estrutural, cada uma tem seu movimento independente friccionado, e o filme, como faísca, surge dos seus atritos e esbarrões.
Em Jeanne Dielman, entretanto, Akerman inspira-se nesse movimento para criar um corpo fílmico que ande em paridade com a narrativa e cause um impacto dual no espectador, construindo tanto uma harmonia sensorial que o embala quanto uma distensão temporal da ação que permite a reflexão sobre ela enquanto acontece. A rígida execução do sistema formal é necessária para que, na metade do filme, ele seja totalmente corrompido. Na noite do segundo dia, Jeanne queima as batatas da janta de seu filho após um programa que demorou um pouco demais, afetando as convenções de seu deslocamento pela casa (num momento de ansiedade e confusão, ela leva a panela de batatas queimadas ao banheiro) e, em consequência, o sistema formal que o rege. A retórica do filme sempre girou em torno do deslocamento (a cinética) de Jeanne pelo espaço, pois são seus passos que preenchem os vazios entre as ações domésticas dentro do plano, seja entre o ato de pegar o café do armário e botá-lo no moedor, seja nos espaços vazios entre os blocos de ação, quando aparecem em extracampo. Desde o início, esse movimento atrita com a estagnação do dispositivo linguístico que a registra. Jeanne desloca-se constantemente, num labor higiênico obsessivo (que Margulies associa à tentativa de limpar os vestígios de sua profissão, “obscena” moral e cenicamente). Uma inquietude estrutural habita as profundidades de seu ser, uma inquietude que era apenas domada pela rotina. Com o queimar das batatas, essa energia não tem mais direção. Ela esparrama-se pelos cantos e causa rachaduras no que estava cimentado pela utilidade. Apenas o acaso que invade essas fendas poderia quebrar o automatismo da rotina de Jeanne e abrir caminho para sua subjetividade como agente das ações. A força primeira (vida) ataca a força segunda (mecânica) e empurra a protagonista em direção à sua emancipação.
Naturalmente, a quebra desse sistema de contenção existencial envolve o caminho inverso da cooptação homem-aparato de Vertov, à medida que os objetos domésticos passam a recusá-la, a cair das mãos da protagonista (a escova que usa para engraxar os sapatos de seu filho, a colher que acabou de secar e precisa lavar novamente). O rompimento entre Jeanne e sua rotina doméstica se reflete nesse trabalho opositivo ao seu, realizado tanto pelos elementos pontuais desse mundo (os utensílios) quanto pelo mundo em si (no terceiro dia, ela chega à padaria ainda fechada pois acorda uma hora mais cedo). A dinâmica individual é uma, a do trabalho e da cidade é outra. Cada pequeno descompasso que consuma essa cisão indivíduo-sistema gera uma suspensão, gera a antecipação de algo mais extremo à frente. A imersão no fluxo bem sucedido das ações é tão intensa, que os seus transvios tornam-se a chave do drama, ainda que haja um arco narrativo proeminente (que Margulies identifica como tipicamente melodramático). É na dimensão material da narrativa que o drama do filme toma forma.
Para o sucesso dessa empreitada estrutural, Akerman construiu uma série de acontecimentos em benefício de uma experiência diegética fortificada. Como indica Margulies, quando Jeanne/Delphine “descasca as batatas e lava os pratos, as batatas ficam descascadas e os pratos ficam limpos”. Esse pacto de aceitabilidade pelo espectador em relação à consumação real do evento prefílmico cria o choque do desfecho trágico encenado. Ao longo do terceiro dia, Jeanne tem uma hora sobrando (ela acordou muito cedo) e desliga-se totalmente de sua rotina, saindo para procurar um botão que seja o mesmo do tipo que caiu do seu casaco canadense (não encontraria, o fim é sempre o movimento). Quando chega, abre o presente de sua irmã que chegou do correio (mais uma camada para o título?) e é pega desprevenida quando chega o cliente do dia. A câmera agora entra no quarto com ela e vemos num longo take estático o cliente deitado sobre Jeanne, movendo-se muito pouco. Ela se incomoda, agita-se na cama e, em determinado momento, tem um orgasmo, do qual se envergonha. No plano seguinte, sentada de frente para o espelho da penteadeira, ela veste a blusa, pega a tesoura, com a qual tinha aberto a encomenda, e mata o homem deitado em sua cama. São as únicas vezes em que uma ação passa de acontecimento para encenação no filme, mas são ainda homogeneizadas na estrutura do filme (conectadas cumulativamente): Jeanne fez café e abriu o presente de sua irmã e recebeu o cliente e gozou e o matou com uma tesoura no pescoço. Todas as ações são atos de emancipação de Jeanne ao indicarem a ativação de seu corpo como agente de si, e cada ato antecipava o outro pela eficácia da rigidez estrutural do filme e dos seus respectivos glitches. Foi tecida uma rede de subversões que remonta à dinâmica foucaultiana da microfísica do poder, em que um pequeno evento leva a uma teia de outros eventos que desembocam na grande mudança estrutural. A estrutura do filme, assim, faz com que o pequeno evento estopim dessa rede de alterações não seja um motivo psicológico (uma relação edipiana com o filho, presente no filme: ele não suporta pensar nela com outro homem), mas um erro material que descompassaria a estrutura de trabalho doméstico por definitivo, levando ao grande contra ataque de Jeanne ao patriarcado que a construiu. Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles precisar valer-se da precisa construção de um sistema formal e laboral para ser um filme anti-sistêmico por excelência.
O último plano do filme tem sete minutos corridos de Jeanne sentada à mesa da sala, repousando com as mãos ensanguentadas. A queda dos utensílios das mãos de Jeanne, suas hesitações, seus devaneios silenciosos e suas ações-digressões da rotina eram os bloqueios gradativamente mais agressivos do fluxo cinético laboral que se consuma quando seus desejos tomam conta das decisões de seu corpo. A estagnação do último plano não mais briga com Jeanne, mas com ela descansa, na ação mais subversiva possível num sistema do movimento compulsório: o repouso.