Por João Pedro Faro
Uma cena
Primeiro, vemos os contornos das costas de um pescador ao remar, registrado pela câmera que está dentro de um barco Furadouro em Mudar de Vida (1966). Agregando seu esforço individual ao esforço conjunto que movimenta o barco, o pescador é parte de um grupo de trabalhadores que une o máximo da capacidade física de cada um para um mesmo objetivo. O embate entre homem e natureza é colocado como princípio laboral, e a vitória desse enfrentamento tende a ser para os pescadores, que continuam constantemente brutos em sua movimentação. Após um plano geral que mostra o Furadouro quebrando ondas embalado por uma canção lusitana entoada pelos pescadores, voltamos para dentro do barco, acompanhando o pesar que recai sobre o rosto do protagonista Adelino (Geraldo Del Rey). Ele acaba de retornar à pesca, após um período afastado da vila que cresceu e dos companheiros de trabalho. Não há em seus movimentos a mesma organicidade característica aos que estão em sua volta. Cada remada o aproxima do esgotamento. Antes, cada descida dos remos parecia ditar uma montagem mais dinâmica à cena. Ao continuarmos com Adelino, os cortes diminuem e o esforço necessário aos movimentos aumentam. Não há corte que dê descanso ao personagem. Suas expressões são vacilantes e culminam em desmaio. Adelino larga os remos e cai dentre os membros do Furadouro, que continuam a jogar as redes na água e a remar contra as ondas como se dotados de uma força inesgotável. Não vemos mais o rosto de Adelino, apenas seu corpo desistente.
Essa sequência da pesca em Mudar de Vida marca alguns pontos essenciais a todo o filme. Sendo o segundo longa do realizador português Paulo Rocha, que tinha alcançado um espaço de relevância após Os Verdes Anos (1963), as recepções ao filme pareciam tomadas por uma certa “atmosfera neorrealista”, como disse o cineasta. Entorno do que o filme registra sobre o trabalho de pesca e a dificuldade de retorno a um espaço fadado às ruínas, ainda mais tendo uso de não-atores e uma proximidade com a ambígua rotulação de “documental” percebia-se mais o que estaria espelhado no cinema de Rocha e menos no que o próprio tentava buscar: “As pessoas viram o filme como um protesto contra a fome e o trabalho pesado. Mas o que eu tinha sobretudo era a admiração por aqueles homens que, sem terem onde copiar, tinham inventado uma complexa forma de trabalho coletivo, capaz de lutar contra a fúria do mar numa costa sem defesa (…) visivelmente era muito forte. Havia uma monumentalidade e uma dignidade trágica nas casas de madeira, nos barcos, nas cordas e nas redes cobrindo os areais a perder a vista”.
Portanto, quando o personagem Adelino não consegue voltar a trabalhar no Furadouro, quando se vê incapaz de continuar no barco e na pesca por não suportar o esforço necessário, ocorre a grande dissociação do protagonista com o espaço que, anteriormente, tinha como pilar. Nesse momento, Adelino se perde de si mesmo, a identidade está acabada. Não é na dureza do trabalho que reside qualquer ideal do filme contra as condições laborais de uma classe, e sim com a forma a qual Rocha coloca a personalidade do indivíduo, sua moral e seus princípios como intrínsecos à cultura de trabalho imposta em sua vida. Adelino não consegue trabalhar com os pescadores de sua vila natal como antes trabalhava, portanto se torna indigno de sua própria origem. Está aí a perda da identidade intrínseca ao processo de trabalho contra a natureza. O destino, tanto do espaço que nasceu quanto de si mesmo, é ser destruído pelas ondas que avançam do mar, que um dia já foi capaz de suportar.
Outra cena
Vistos de longe, um grupo de pescadores lança redes ao mar e cantam em italiano. Seus rostos são indiscerníveis, o único rosto que vemos aproximado é o da protagonista Karin (Ingrid Bergman), recém-casada com um pescador e morando à beira de um vulcão na cidade de Stromboli, que dá nome ao filme de 1950, do cineasta Roberto Rossellini. A adaptação àquela vila costeira não está sendo nada fácil, e ver o trabalho da pesca pode ser uma possibilidade de se acostumar com o novo ambiente que veio morar. Ela observa os homens trabalhando com certa curiosidade. Até que, em um plano aproximadíssimo das águas, um cardume de atuns submerge, cortando a tela. O som torna-se mais caótico, nos movimentos violentos dos peixes que tentam fugir das mãos dos pescadores. Voltamos ao rosto de Karin, aterrorizada. As águas estão revoltas, os homens seguram os atuns e os puxam para si. Metem arpões em uns enquanto outros tentam escapar. O trabalho torna-se fúria. O registro não se interessa por seus corpos em si, apenas por seus membros, sua força braçal que agarra os atuns. Antes afastada, a câmera se aproxima apenas em detalhes de toda a pesca, intercalados violentamente pela montagem, que aumentam a dureza do embate entre os peixes e os pescadores. A força do trabalho daqueles homens assusta Karin de um jeito traumático, que só tira sua expressão de horror para o silêncio da cena seguinte. Seu marido, grande causador de suas dores pelo abuso já marcado no recente matrimônio, pergunta: “Gostou da pesca?”. Karin só responde, seca: “Não”.
Quando Rossellini filmava Stromboli, seu nono longa-metragem e primeiro trabalho com Bergman, os percalços do pós-guerra já encontrava implicações diferentes do que havia feito em Alemanha, Ano Zero (1948). A locação de Stromboli tem um potencial tão apocalíptico quanto seu filme anterior que fechava a Trilogia da Guerra, porém a ameaça sai do âmbito puramente humano da guerra para manifestar-se em uma natureza à beira de explodir. Essa manifestação quase sobrenatural do natural, retomada na sequência final do vulcão, é marcada pela cena da pesca. Nela, os habitantes locais, através do trabalho rotineiro, dominam a natureza com as mãos. Para o olhar estrangeiro de Karin, amplificado pelo abuso doméstico, a identificação daquele espaço como um de normalização do brutal, onde uma cena daquelas que presenciou com tanto horror é algo diário, afasta ainda mais qualquer possibilidade de que ela consiga se estabelecer naquela vila. Torna-se sobre como o trabalho não consegue se dissociar da imagem total de uma determinada sociedade e, consequentemente, da identidade dos seus membros. No caso da vila costeira italiana, o contato com o destrutivo é totalmente insensibilizado.
As duas cenas
Tanto a cena da pesca em Mudar de Vida quanto em Stromboli apresentam um desencontro difícil entre a identidade de um personagem que não consegue se estabelecer diante da identidade de um espaço que não pertence. O drama para Adelino, em Mudar de Vida, é perder o contato com as próprias origens. Para Karin, em Stromboli, é a solidão e o abandono ao perceber que não consegue se adaptar a um novo lugar que habita. Em ambas as sequências, e para ambos os cineastas, cabe ao trabalho (no caso, a um mesmo trabalho) estabelecer distâncias, ritos e pessoas.
Por mais que o gesto de encontro do trabalho dos pescadores com o mar seja retratado em Rocha e em Rossellini com toda a violência necessária aos homens, eles surgem como traço de um gesto inevitável aos que vivem às margens. Os pescadores de Stromboli e os pescadores do norte de Portugal são bases inevitáveis de cada um desses lugares, e, sendo cada um dos filmes sobre as próprias locações, base do que circunda cada um dos filmes. As classes dos trabalhadores braçais se encontram em um estado em que seus ritos laborais já apresentam certa antiguidade, traços próprios, personalidade inconfundível com o lugar que nasceram, cresceram e trabalham. O gesto do trabalho e seus traços pessoais aos coletivos de cada lugar, intrínsecos a quem são essas pessoas, são consequentemente parte do que ambos os filmes buscam encontrar em suas jornadas trágicas da solidão da figura forasteira. Cabe aos outros, sejam esses outros os protagonistas desencontrados, sejam os cineastas, a saber como se aproximar desses gestos através do que podem.