“A Negra de…” e a escravidão silenciosa

Por Chico Torres

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Um filme político, para fazer valer o seu esforço, precisa ser, acima de tudo, didático. Afastando-se de qualquer estado contemplativo ou de apelo emocional, deve indicar sistematicamente suas ideias e críticas, não poupando esforços para transmitir com precisão tudo o que almeja. Por outro lado, para progredir ainda mais em suas funções políticas, deve se propor a elaborar todo o seu arsenal ideológico sob o véu inocente de uma narrativa. Sendo assim, antes de se apresentar como tese ou documento histórico, um filme político irá funcionar plenamente se chegar ao patamar de obra de arte.

E “A negra de…” (La noire de…), de Ousmane Sembene, atinge esse propósito. Um filme objetivo, que possui apenas uma hora de duração, não trazendo consigo nenhuma superficialidade. Um filme pessimista e não condescendente sobre as mazelas do colonialismo francês na alma de uma jovem mulher senegalesa. Na obra, o artifício do trabalho é o elemento principal para se pensar criticamente essa questão. O trabalho faz evidenciar as diversas relações sutis sobre a alienação e suas camadas. Pois não é Diouana cada vez mais incentivada a alienar-se de sua cultura, dos aspectos de seu povo, para cultuar o progresso estrangeiro do colonizador, consumindo sua moda e procurando adotar às suas maneiras? Não é ela quem parte para a França, sonhando com um emprego digno que irá lhe proporcionar os avanços da vida civilizada? Todo o sonho ingênuo de Diouana é apagado quando a personagem descobre que seu trabalho não é cuidar das crianças do casal francês de classe média, mas ser sua empregada doméstica.

Vemos pouco a pouco as energias de Diouana serem sugadas. O acordo civilizado que garantia o seu sucesso como alguém que se liberta das condições limitadas de seu país, torna-se  escravidão, já que agora ela circula apenas entre as paredes do apartamento dos patrões. Estes, subjugam Diouana seja de forma sutil ou direta: vão dá exotização à humilhação sem o menor constrangimento. O ponto mais sensível da personagem é o modo como aquelas pessoas a enganaram, a rebaixando a um papel que ela não esperava cumprir. Revela-se assim o caráter ambíguo da personagem, já que alienado. O que é ferido em Diouana é, antes de mais nada, o seu orgulho.

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Portanto, o que vemos ao longo do filme é o crescente sofrimento psíquico da personagem, submetida a uma condição de isolamento completo. Ainda que as funções domésticas de Diouana sejam simples, o que a deprime não é a exaustão, mas a clausura, o modo injusto como se dá o seu trabalho e as constantes humilhações que sofre, sobretudo de sua patroa. Diouana vive fechada no apartamento, tendo que sofrer uma série de humilhações da mulher ociosa.

A Clausura é um dos elementos mais relevantes no filme. Não apenas no que se refere à claustrofobia provocada pela presença constante de Diouana no apartamento. Muitas das cenas que se passam em Dakar estão contaminadas pela presença do colonizador, como se o território africano pertencesse a ele, como se as trocas de cenários e ambientações não tivessem quase nenhuma demarcação, nos dando a sensação de que espaços tão distintos, na verdade, integram um único espaço dominado. O exemplo mais didático dessa questão é a cena em que negras se oferecem como mercadoria para serem empregadas pelos brancos. Elas ficam paradas nas calçadas, enquanto mulheres brancas as analisam como peças a serem compradas, referência explícita ao processo de compra de escravizados. Uma cena bastante funcional.

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Se em suas aspirações vemos uma Diouana alienada e fútil, é através de uma narração em off da própria personagem que percebemos suas angústias, coisa que contrasta com sua personalidade de jovem deslumbrada. A narração nos chega como um discurso de revolta, quase existencialista em suas reflexões, impondo à personagem um tipo de sobriedade que acaba por indicar muito mais os pontos de vista do diretor do que consonância com o caráter da personagem. Até o próprio suicídio de Diouana pode ser visto como a adição de uma mensagem política direta. Isso pode artificializar o universo particular da personagem, mas cumpre o papel denunciador do filme. O suicídio de Diouana é exemplar, à medida que revela o aspecto trágico que submerge de um cotidiano que esconde uma série de mazelas estruturais.

Sembene não ameniza em suas escolhas, o que evidencia o seu engajamento. A mensagem carregada de pessimismo surge sempre mais potente do que a narrativa, mas esta continua lá, se desenvolvendo através das pequenas misérias cotidianas, fazendo com que nos emocionemos com o sofrimento da jovem senegalesa.  O filme termina declarando orgulho e resistência, pois nem Diouana e nem sua mãe aceitam o dinheiro que o francês oferece para amenizar a sua culpa. A grande máscara africana que figurava na parede do apartamento do casal francês e que foi um presente de Diouana, volta para sua origem e, através de um menino africano, surge como símbolo fantasmagórico, como se a África e tudo o que ela pode representar, todo a beleza e o todo o horror, assombrassem aqueles que ousam invadir o seu território e retirar a sua liberdade.

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