INTRODUÇÃO AO SLOW CINEMA

Em seu percurso histórico, a crítica de cinema constantemente se depara com filmes realizados em períodos próximos com proposições estéticas semelhantes ou convergentes, apesar das singularidades de cada realização. Como estratégia de mapeamento de certas configurações do cinema, novos termos são criados por críticos e/ou pesquisadores, sem a intenção de fundar algo programático – como apontar movimentos cinematográficos estabelecidos – e com o esforço de estabelecer conceitos ainda que à revelia dos cineastas.

Nos anos 2000, o termo “slow cinema” desponta como conceito recorrente em textos de críticos que se dedicaram a pensar determinado conjunto de filmes realizados na contemporaneidade. A nova edição da Multiplot! propõe uma reflexão sobre o “slow cinema”, desde apresentar como o termo se desenvolveu em um debate complexo entre críticos e pesquisadores até indicar de que modo o cinema contemporâneo reverbera tal designação.

Primeiras aproximações

Dentro da crítica de cinema, o conceito de “slow cinema” começa a ser configurado a partir do uso da noção de “slowness” (“lentidão”). Em 2003, o crítico francês Michel Ciment usa a expressão “cinema of slowness” (“cinema da lentidão”) para pensar filmes que se posicionam como contraponto ao modelo de curta duração dos planos do cinema recente hollywoodiano e da televisão. Em texto escrito para o 46º Festival Internacional de Cinema de São Francisco, Ciment argumenta: “Ao se tornarem impacientes com o bombardeamento de som e imagem em que eram submetidos como espectadores de TV e de cinema, alguns diretores reagiram com um cinema da lentidão, da contemplação, como se quisessem viver novamente a experiência sensorial de um momento revelado em sua autenticidade”*. Béla Tarr, Tsai Ming-liang, Abbas Kiarostami, Theo Angelopoulos, Nuri Bilge Ceylan e Sharunas Barthas são alguns dos cineastas citados por Ciment dentro desta designação do “cinema da lentidão”.

Em 2008, o pesquisador Matthew Flanagan se apropria da expressão de Ciment e desenvolve o uso teórico do termo no artigo “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. Ele aponta como características formais compartilhadas por alguns cineastas: “o emprego (muitas vezes, em extremo) de longos planos, modos descentrados e discretos de narrar e uma ênfase acentuada na quietude e no cotidiano”**. Flanagan considera que já não seria suficiente empregar a noção abstrata de “lentidão” para compreender o cinema feito por tais realizadores, mas reposicioná-los em um projeto formal que ele nomeia de “estética do slow”.

O conceito de “slow cinema” só irá ganhar popularidade entre críticos e cinéfilos anglo-saxões, a partir de 2010 com uma série de textos da revista britânica Sight & Sound, em especial o editorial escrito por Nick James que questionou o efeito político dos “slow films”. A partir daí, o debate se polariza entre críticos e pesquisadores de cinema: alguns celebram o “slow cinema”, enquanto outros rechaçam. Nos Estados Unidos, Steven Shaviro (2010) considerou o “slow cinema” como esteticamente retrógrado, enquanto Manohla Dargis e A. O. Scott (2011) se posicionaram em defesa do conceito em artigo no jornal New York Times.

Possíveis origens

Alguns pesquisadores (como o próprio Matthew Flanagan) situam a origem do slow cinema no cinema moderno do pós-guerra, procurando traçar uma genealogia que inclui filmografias tão distintas quanto as de Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu, Carl Theodor Dreyer e Robert Bresson. Outros preferem restringir o slow cinema como fenômeno específico do cinema contemporâneo, em um contexto global e intercultural que busca resgatar por meio da estética fílmica uma temporalidade mais dilatada em contraposição ao tempo acelerado do capitalismo tardio.

Apesar do debate bastante controverso em torno do “slow cinema”, o conceito não se diluiu ou perdeu força. Ele passou a ser o foco de pesquisas acadêmicas, como as teses de doutorado de Matthew Flanagan (2012) e Nadin Mai (2015). A partir do estudo da obra de Lav Diaz, Nadin Mai criou o blog The Art of Slow Cinema e uma distribuidora de filmes com o perfil, a tao films. Em 2014, três livros importantes foram lançados como referências para o estudo do “slow cinema”: Tsai Ming-liang and a Cinema of Slowness, de Song Hwee Lim; Slow Movies: Countering the Cinema of Action, de Ira Jaffe, e On Slowness: Toward an Aesthetic of the Contemporary, de Lutz Koepnick. Há dois anos, Tiago de Luca e Nuno Barradas Jorge organizaram o livro Slow Cinema, que reúne um conjunto de artigos escritos por diferentes autores que pensam o conceito.

De modo geral, críticos e pesquisadores caracterizam o slow cinema como filmes que investem no prolongamento da duração, na experiência da contemplação, na manutenção da espera, na permanência do olhar. Seria menos a exploração do longo take, mas sobretudo uma reelaboração da mise-en-scène a favor dos pequenos acontecimentos. Song Hwee Lim (2014) acrescenta outros parâmetros do slow cinema, como a ênfase nos silêncios, na quietude, na contenção do plano. Lucia Nagib (2016) explica que a defesa do slow cinema pressupõe “a existência de um cinema rápido, contra o qual ele se posiciona como alternativa vantajosa. Em uma época em que a mercantilização da velocidade está obliterando impiedosamente a fruição dos nossos prazeres mais básicos, de comer a desfrutar de uma bela paisagem, parece realmente prudente defender a lentidão como antídoto contra o consumismo insensato”*** .

Apesar das características gerais acima mencionadas, é arriscado enquadrar o slow cinema em padrões completamente definidos ou fórmulas rigidamente pré-estabelecidas. As estratégias fílmicas mudam de acordo com a proposta de cada realizador. No lugar de responder o que seria o slow cinema por um pressuposto unívoco e essencialista, a atual edição da Multiplot! é um convite para pensar como o conceito se desdobra em filmes particulares ou como se materializa na filmografia de determinados cineastas contemporâneos.

  • CIMENT, Michel. “The State of Cinema”. Unspoken Cinema, 2003. Disponível em: <http://unspokencinema.blogspot.com/2006/10/state-of-cinema-m-ciment.html>.
  • FLANAGAN, Matthew. “Towards an Aesthetic of Slow in Contemporary Cinema”. 16:9, nov. 2008. Disponível em: <http://www.16-9.dk/2008-11/side11_inenglish.htm>.
  • NAGIB, Lucia. “The Politics of Slowness and the Traps of Modernity”. In.: LUCA, Tiago de; JORGE, Nuno Barradas (orgs). Slow Cinema. Edingburgh: Edingburgh University Press, 2016. . 26
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