Por Carla Oliveira
O nome do cineasta catalão Albert Serra é citado já nos primeiros postulados sobre slow cinema. Matthew Flanagan, em 2008, ao apontar as bases estéticas desse cinema (categorizado, em 2003, por Michel Ciment), alude aos longos planos utilizados por Serra na estruturação da narrativa de seus segundo e terceiro longas-metragens — Honra de Cavalaria (2006) e O Canto dos Pássaros (2008) — como exemplos de um dos principais traços de uma corrente de cinema caracterizada pela contemplação da passagem do tempo, enredo enxuto e composição formal rigorosa. A longa caminhada pelo deserto dos três reis magos em busca do Messias recém-nascido em O Canto dos Pássaros é referida como típica, assim como a redução da grandiosa e aventuresca obra de Cervantes a uma pequena variação abarcante de um trecho da vida de Quixote, quando, envelhecido, contempla os ideais da cavalaria e a perspectiva de seu próprio fim em Honra de Cavalaria. Parte da galeria de personagens históricos, literários ou míticos presentes no cinema de Serra, como Dom Quixote, Sancho Pança, os reis magos e Casanova, está em franca e lenta trajetória rumo à morte. Figuras tidas por eternas, como o Drácula e Jesus, cruzam alguns de seus caminhos. Em sua última e melhor obra, A Morte de Luís XIV (2016), que fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes e recebeu o prêmio Jean Vigo no mesmo ano, é o agonizante fim da figura real o foco de sua atenção.
Em seu célebre ensaio Ontologia da Imagem Fotográfica, André Bazin expõe bases e referências de sua complexa concepção de realismo (tantas vezes citada e revitalizada nos textos sobre slow cinema): a criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo; a busca da expressão dramática no instante (não apenas a expressão das formas) e a constatação de que a imagem das coisas é também a de sua duração (o que o cinema torna possível) são algumas delas. Ressalto que o termo “real” será usado neste texto sobre a obra de Serra em referência ao rei e à realidade/verdade que se busca retratar com realismo (na maior parte das vezes, sem a intenção de gerar ambiguidade). No referido ensaio, Bazin escreve que “Luís XIV não se faz embalsamar: contenta-se com seu retrato, pintado por Lebrun.” Ao contrário dos faraós, soberanos também identificados com o sol, o rei francês não manifesta o desejo de conservar sua aparência na própria carne. Amante das artes e criador da sua própria imagem de poder, cerca-se em sua corte de renomados artistas, como Charles Lebrun, que, além de retratar o rei em seu apogeu, é responsável, junto ao paisagista André Le Nôtre e os arquitetos Louis Le Vau e Jules Hardouin-Mansart, pela criação de um de seus maiores símbolos de seu poder: o Palácio de Versalhes. O compositor Jean-Baptiste Lully, o dramaturgo Molière e o escritor Louis de Rouvroy — o duque de Saint-Simon — também frequentam a corte. É a partir das extensas Memórias de Saint-Simon, registradas com obstinação no intuito de fixar a realidade de um tempo no papel, que Serra e o produtor Thierry Lounas adaptam o roteiro de A Morte de Luís XIV, debruçando-se na análise dos seus últimos dias, vividos em 1715, quando o rei contava com 77 anos.
Seus anos de juventude, dedicados à construção da própria imagem, são muito bem retratados no cinema em O Absolutismo: A Ascensão de Luís XIV (1966), filme de Rossellini, neorrealista preferido de Bazin. Ciente de que aparência e poder estão intimamente ligados, o rei constrói cenários faustosos e os decora com pompa. Com intenção de manter a nobreza controlada, cerca-se, em Versalhes, de cortesãos de quem exige lealdade, etiqueta, maquiagem e bons figurinos. Protagonista absoluto, submete seus atores secundários e figurantes a um roteiro exaustivo e rigorosamente decupado, onde cenas de suas aparições públicas são intercaladas pela exaltação de sua rotina em incansáveis cerimônias palacianas. Mise-en-scène real filmada por Rossellini.
Em A Morte de Luís XIV, o cenário, fotografado com elegância por Jonathan Ricquebourg, já está rigorosamente composto. O quarto real do Palácio de Versalhes é reconstituído e iluminado com velas, o que confere sobriedade ao ambiente recoberto de ouro e sumptuosidade, onde se sobressaem quadros e um busto de um rei jovem (sabe-se que Luís XIV teve um busto esculpido em mármore por Bernini pelo qual nutria grande apreço) e o ruído de um relógio, assinalando a inexorabilidade do tempo. Em seus filmes anteriores, Serra havia trabalhado com atores não-profissionais para dar a ilusão de realidade e também por uma escolha moral, com a intenção de se manter afastado do sistema capitalista de produção fílmica (resolução típica dos realizadores do slow cinema). Aqui, em seu primeiro filme falado em francês, cria um espaço tão cheio de detalhes e realismo que favorece ainda mais a assombrosa interpretação de Jean-Pierre Léaud (admirado por Serra por sua pureza e incorruptibilidade) de um rei em agonia após extenso reinado. O ator, que estreou no cinema como um menino em Os Incompreendidos (1959), filme de Truffaut dedicado à memória de Bazin, impressiona na caracterização da velhice — nos tremores e trejeitos de um rosto enrugado, com grandes bolsas sob os olhos e emoldurado por uma espantosa peruca grisalha, nos típicos ruídos feitos com a boca, na rabugice e teimosia em manter o rigor na etiqueta e no cerimonial (o que é observado até o final) — e, principalmente, na manifestação do sofrimento decorrente da progressão de uma gangrena na sua perna esquerda. A expressão da dor, a gemência, a ofegância, os gritos e súplicas em voz débil e trêmula são gigantescos. Tanto o sublime quanto o grotesco são caros a Serra. O sorriso do rei é visto apenas um vez, ao brincar com seus cães logo após um passeio pelos jardins do palácio na sua única aparição em cenário natural durante todo o filme. Sutis sinais de contentamento também surgem ao escutar os oboés e tambores em comemoração ao dia de São Luís, quando uma imagem da paisagem francesa é mostrada através de uma janela. No mais, não se sai do quarto, da intimidade real. Serra não tem intenção de fazer comentários políticos ou sociais. A moral cortesã apenas transparece sutilmente em momentos em que o rei recebe assessores pretendendo angariar fundos de forma suspeita ao propor edificações ou quando ele pergunta detalhes íntimos das cortesãs ao seu médico, que acaba comentando sobre a nudez e o comportamento de suas pacientes.
.Os médicos são as principais figuras em torno do rei, assim como Blouin (Marc Susini), seu fiel valet de chambre. Luís XIV confia na ciência. O cargo de Primeiro Médico do Rei, ocupado por Fagon (Patrick d’Assumçao) é de grande prestígio na corte. Maréchal (Bernard Belin) é o cirurgião que o acompanha. Valem-se de unguentos, faixas, massagens, considerações sobre a dieta na tentativa de tratar a doença do rei. Frente à inocuidade de tais medidas, Blouin sugere a intervenção dos médicos da Universidade de Paris. Fagon rechaça a ideia, argumentando que, segundo Molière, os médicos são mais perigosos quando em grupo. Molière foi um crítico feroz da classe médica, satirizada em sua célebre peça O Doente Imaginário (1673), dedicada pelo dramaturgo a Luís XIV. Serra não se apropria do escracho ou mesmo da crítica, mas de uma fina ironia e observação, que torna por humanizar os médicos em seu erro. Não há má intenção, Fagon e Marechal permanecem o tempo inteiro junto ao rei e são solidários ao seu sofrimento, mas hesitam no diagnóstico e na tomada da conduta que poderia se mostrar resolutiva: a cirurgia na perna gangrenada do rei. Os médicos de auditório — os da Universidade de Paris na definição de Fagon — examinam, enfim, o rei, assim como um charlatão de Marselha. A sangria proposta pelos primeiros e o elixir preparado pelo segundo também não surtem nenhum efeito. A putrefação, a febre, a dor e a náusea desfiguram o rei.
Presença constante no aposento real é também a da envelhecida Madame de Maintenon (Irène Silvagni), a esposa secreta de Luís XIV, cujo nome ele pronuncia ao final de um plano longo, estático, esteticamente perfeito, onde sua imagem quase inanimada nos comove ao som do Kyrie da Missa em Dó Menor de Mozart. Ao pressentir a proximidade de sua morte, chama também seu pequeno herdeiro, o futuro Luís XV, para lhe aconselhar a evitar construções, guerras e a se aproximar da religião. Há tempo e espaço para arrependimentos. Le Tellier (Jacques Henric), padre jesuíta, confessor de Luís XIV, é igualmente uma personalidade estimada: é à sua ordem que Luís XIV deseja que seu coração — único órgão a ser mumificado — seja entregue. Após sua morte, o corpo de Luís XIV é cortado e examinado em partes que não correspondem a sua figura. Na necrópsia do rei, a imagem que se sobressai é a do pesar de Fagon.
Apesar de ter uma gênese conceitual apontada no pensamento de Bazin e no cinema europeu moderno surgido no pós-guerra, o slow cinema não é uma simples continuidade do neorrealismo. O uso da tecnologia digital torna o método de fazer filmes distante do purismo. Serra acumula centenas de horas de filmagens, usando várias câmeras digitais. É apenas durante a edição que a forma de seu filme começa a surgir, transformando-se no processo. Particular de Serra é também a inspiração na literatura, de onde capta a essência de um evento vital, de uma narrativa. Registros históricos, memórias e imagens eternizaram a vida e a morte de Luís XIV. O quadro que o imortalizou no campo pictórico foi realizado por Hyacinthe Rigaud e mostra sua imagem envelhecida, porém altiva. O filme de Serra, com seus longos planos contemplativos dos últimos e penosos dias de um rei interpretado de forma tão genuína por Léaud, nos dá a melhor representação da figura real vulnerável, mortal, tomada de humanidade.