Por João Pedro Faro
“Gosto de voltar aos locais para verificar as suas mudanças, mas também as modificações produzidas em mim mesmo por relação àquele espaço. Tento criar um sentido a partir do encontro das duas variáveis da mudança, a minha e a do espaço.”
James Benning em entrevista ao À Pala de Walsh
Ao final do primeiro segmento de Landscape Suicide (1987), uma voz anônima narra sua primeira noite na cidade onde ocorreu o crime que acabamos de acompanhar: “Quando comecei a história me senti tão mal por Bernadette que negligenciei sua vítima. Na noite que fui para Orinda, tudo ficou mais real. Alucinei com uma figura escura em meu quarto de hotel”. Como mais um dos segmentos fragmentados que formam Landscape Suicide, essa narração dura pouco mais de 15 segundos e acontece enquanto James Benning fixa a imagem em um mapa da cidade. O trecho é seguido por diversos enquadramentos da paisagem suburbana de Orinda, que concluem a breve narrativa do assassinato de uma jovem cometido por sua colega em um momento de fúria. Nesses momentos finais da primeira parte do filme, impulsionam-se as perguntas essenciais de Benning que estruturam todo o filme: Quais acontecimentos permitem com que determinado som, espaço e tempo transformem-se em uma memória fílmica? Quais são esses sons, quais são esses espaços e, o mais essencial, qual a duração desse tempo?
Em primeiro lugar, o crime de tabloide: a menina sem graça da escola que esfaqueia até a morte sua colega popular. O ponto de partida é o terreno mais frágil possível para uma análise sociológica das mais típicas relações do norte-americano comum e que parecem importar tanto ao cinema, ainda mais ao cinema oitentista. No caso de Benning, as intenções são bem mais cinematográficas. Ao diretor, não interessa a análise do que não conseguimos ver, mas sim de tudo que já vemos. Interessa o que existe imageticamente para qualquer cidadão médio, mas que parece nunca se relacionar com um evento tão extraordinário quanto um assassinato. Porém, a partir desse evento, tudo que é visualmente banal irá inevitavelmente integrar o macabro. A rua em que Bernadette morava será a partir de agora registrada como o espaço em que morava uma assassina. Uma cidadezinha tão remota quanto Orinda agora é palco de um crime que ocupa matérias em revistas de grande circulação. A manhã em que se descobre um cadáver parece ter uma paisagem diferente de qualquer outra manhã, mesmo que nada tenha realmente mudado. Esse local tão comum estará registrado em todas as testemunhas como parte de um total maior que é a memória, onde ele será um local mórbido. Consequentemente, os sons (um rádio tocando Pretty Young Thing, as bolas de tênis batendo em uma quadra, a passagem movimentada de carros em uma rodovia) e as imagens (um estacionamento, uma colina, um outdoor) assimilam o ideal cinematográfico que o autor procura ao registrar o que fica marcado com cada espectador desse crime. Benning comprova as transformações semânticas de um lugar através dos planos e da precisão com o que enquadra, como se fossem definitivamente flashes de alguma (ou algumas) memórias.
O que permite potencializar o que poderia ser descrito como documental, como busca de um cinema que se aproxima da realidade, é justamente a encenação. No segmento de mais de 20 minutos, em que a atriz Rhonda Bell reencena o diálogo de Bernadette com a polícia, Benning cria um senso hipnótico perturbador (parecido com o que o diretor faz em seus filmes constituídos apenas por paisagens). Primeiro, há uma sutil e curiosa decisão em buscar uma atriz muito mais parecida com a vítima de Bernadette do que com a própria. Segundo, a performance de Rhonda carrega um peso quase dreyeriano em que o close da condenada possibilita tudo em quadro. O olhar impassível de Bernadette ao relatar seu crime e a voz mecânica de seu interlocutor, nunca mostrado, centralizam o poder de Benning em experimentar a paisagem de um rosto em estado pós-traumático. Aqui retornamos ao que temos como essência: ao deixar com que o plano se estenda, ao dilatar o tempo daquele determinado espaço, Benning consegue enquadrar todos os elementos que lhe interessam da personagem em um único plano que se mantém entre breves cortes para o preto, que funcionam quase como sinapses nervosas transmitidas pela montagem. Não faz parte de Landscape Suicide estudar o que motiva ou o que constrói um assassino, mas sim como as ações destes afetam toda a constituição de uma cena.
Bernadette encara seu interlocutor enquanto diz “Tenho muitos sentimentos de inferioridade. Penso muitas coisas ruins sobre mim mesma”, tentando explicar como chegou ao ponto de matar sua amiga. Mas ao invés de centrar-se nessa frase para tentar compreender melhor o acontecimento, ela apenas existe para dar mais força ao que é mais custoso nesse momento para o filme: os olhos de Rhonda Dall enquanto repete as frases de Bernadette. É o contexto que justifica a potência de suas imagens.
Após estabelecer sua estrutura na primeira metade, Benning reverte a cronologia de suas cenas para seguir os impactos fílmicos do serial killer Ed Gein. A segunda metade começa com as paisagens da cidade de Winsconsin que cercam o julgamento do assassino, três décadas antes do crime de Bernadette. O choque entre os registros da primeira para a segunda parte pode ser resumido em dois fatores principais. Benning abandona o colorido brega suburbano para estabelecer uma frieza impiedosa de uma ruralidade em nevasca, absolutamente abandona por qualquer vida (mesmo o veado que vemos correndo pelo bosque só é apresentado para que suas tripas sejam abertas no extenso plano final do filme). O diretor também está lidando com um crime histórico, portanto as implicações dos assassinatos de Gein traduzem-se cinematograficamente em uma brutalidade mais expansiva do que anteriormente (os animais presos, o cemitério, a caça, o som dos tratores). As constituições são mais rígidas, tendem ao horror de um isolamento total, como se as únicas imagens que poderíamos assimilar já fossem de uma natureza tenebrosa por si só. A barbaridade de Ed Gein em seu crime viria como consequência dessas imagens e desses sons naturalmente tenebrosos do ambiente em que vive, e agora, através de suas vítimas, estaria apenas retribuindo a esse espaço o terror que lhe foi herdado.
Elion Sucher interpreta Ed Gein na cena de seu julgamento, com o único plano de duração próxima ao de Bernadette. Existe algo de clássico no personagem de Gein comparado ao da jovem estudante, é de uma ambiguidade emocional muito mais perversa. Não há mais fragilidade no assassino, a ambientação cinquentista cria caminho para um referencial verdadeiramente monstruoso. Afinal, como uma figura marcada na história norte-americana, sua presença constitui um imaginário bem claro de vilão, a memória criada a partir desse personagem tende aos cenários e as paisagens do que já é casualmente amedrontador. Os próprios documentos resgatados que Benning filma seguem essa linha. Enquanto no primeiro caso, o que foi deixado pela assassina foi uma carta ao seus pais, narrada com intimidade por Rhonda, o caso de Gein recebe anotações de como cortar carne humana. As imagens parecem menos banais, a encenação ganha uma força mais totalizadora justamente por representar uma narrativa mais fundamentada na popularidade e na clareza de suas consequências fatais.
Não havendo nada mais importante para o cinema experimental do que o processo, Benning se torna o grande autor que é dentro desse nicho com a forma em que expõe seu próprio processo como parte integral da obra. Em Landscape Suicide, seu método enquanto realizador se encontra diretamente com a totalização do que quer tratar. Lidando tanto com a tragédia de página dupla da Rolling Stones quanto a tragédia de capa da revista Times, Benning reforça com seu filme o processo de revisitação do cinema que nós mesmos criamos com nossos traumas. Por meio deles, surgem imagens eternas, consequência de um processo muito pontual de registro dentro de um processo mais constante e banal de observação. Seja o que for que estejamos observando, ouvindo, presenciando.
No fim, os rostos só existem para que as paisagens existam, os rostos são as próprias paisagens e as paisagens também são rostos. Por mais que a estruturação de Benning seja precisa, quase matemática, o produto de Landscape Suicide tende a somar essas constituições em presenças similares. Tudo é igualmente contaminado por angústias, medos e traumas relacionáveis. É talvez um dos mais bem-sucedidos em compreender o que há de mais abstrato entre nossas relações psíquicas e geográficas, justamente pelo seu controle de ritmo tão bem estruturado. Se uma paisagem é o que os nossos sentidos depreendem da parte de um espaço e as sensações a ele depreendidas são tomadas pelo fúnebre, todo registro dessa paisagem será como retornar às piores frações de alguma memória. Paisagem/suicídio.