Por Arthur Tuoto
“Memória espectral, o cinema é um luto magnífico, um trabalho de luto magnificado. E ele está pronto a se deixar impressionar por todas as memórias enlutadas, isto é, pelos momentos trágicos ou épicos da história. São então esses enlutamentos sucessivos, ligados à história e ao cinema, que, hoje, ‘fazem caminhar’ as personagens mais interessantes. Os corpos enxertados desses fantasmas são a matéria mesma das intrigas do cinema.”
Jacques Derrida em entrevista para a Cahiers du Cinéma (abril de 2001).
Vinte anos atrás, James Cameron fez da morte um renascimento. A partir da recriação milionária de uma tragédia, o cineasta norte-americano concebeu não apenas um dos maiores filme-eventos da história, mas relocalizou a própria historiografia daquele cinema. Uma perspectiva clássica que se focava na fundação de uma iconografia própria, que rejeitava a simples reverência ou reciclagem como atributos histriônicos e autoconscientes de uma narrativa novelesca, mas partia em busca de uma reconquista pelo que é efetivamente inocente.
Jean-Marc Lalanne, em texto sobre Titanic para a Cahiers du Cinéma em 1998, afirma que a obra de Cameron representa um ponto de inflexão do cinema americano, uma transição do seu maneirismo para um sonho neoclássico. Distante das visões apocalípticas ou irônicas de diretores como Oliver Stone e Irmãos Coen, abordagens que direta e indiretamente marcaram o imaginário estadunidente noventista e, definitivamente, longe de qualquer caricaturização oitentista, Cameron procurou, nesse luto glorificado, ressuscitar uma grandiosidade atemporal, uma primazia do contar que tem na universalidade arquetípica do amor e da morte uma perspectiva narrativa que se completa.
Perdemos essa ingenuidade? É possível encontrar, hoje, um drama fabuloso tão grandioso e referencialmente autêntico – mesmo libertário em seu jogo historiográfico – como foi Titanic em 1997? Ao mesmo tempo que o trabalho parte de uma perspectiva artesanal muito comovente nessa restituição de um sonho clássico, é evidente que ele funda essa mediação sobre uma base bastante cara ao seu autor: a tecnologia. E não estamos falando apenas da tecnologia que permitiu a reconstrução virtual do navio e de sua tragédia grandiosa, mas em como a obra assume a artificialidade como um mote dramático. O cenário idílico é recriado, da sua luz falsa alaranjada – uma filiação muito pouco solar – a assépticidade dos ambientes de um navio novo em folha. Nas externas o que brota é essa luz inautêntica – mais ilusória ainda na icônica cena do casal protagonista na ponta do navio – e nas internas, a reprodução ideal e intocável de tudo, dos objetos aos ambientes. Cameron assume aquele espaço como um estúdio magnificado. O tempo não passou aqui. É tudo novo e fresco, conservado numa ordem de simulacro, de virtual não apenas na dimensão do efeito especial, mas sintético em todos os seus entornos imaginativos. O navio é um estúdio de cinema, um sonho clássico naufragado que o diretor tenta recriar.
Nem por isso Titanic é um obra nostálgica. Mais do que uma reverência, o que se procura é uma continuidade, uma leveza que nos aponte para aquilo que já sabemos que vai acontecer. Amor e morte se complementam a partir dessa fantasmagoria, desse espectro cinematográfico que ronda o filme, mas que nunca é exatamente incisivo em sua orientação. Uma sutileza que se reflete na maneira como Cameron leva a história, já que estamos diante de uma obra grandiloquente, mas também muito leve. Até a morte aqui é convidativa, imersa numa perspectiva de sonho, de pesadelo distante onde somos espectadores protegidos. É evidente que a construção tensional existe, mas o fim é guiado por uma delicadeza, um aconchego, uma tragédia contemplativa produzida para ser acolhida numa cadeira almofadada de cinema. O fato real é muito mais mote de fantasia, de cenário disparador de efeitos lúdicos (ainda que frontais), do que contextualização crua dos eventos. O cinema testemunha, mas remodela, recompõe a realidade a partir do mote novelesco e sedutor.
Existe um senso de imersão tecnicista, que Cameron potencializou ainda mais em Avatar (2009) com o elemento 3D, que resguarda o filme nessa elegância imperativa. O diretor parte de um arsenal técnico muito pesado justamente para nos guiar com mãos leves. As panorâmicas externas em CGI, o deslizar da steadycam, os corpos despencando em ângulos primorosos, tudo reitera um ponto de vista onipresente que testemunha aquela situação com a devida distância, com o devido balançar harmônico das ondas.Titanic é uma fábula em que autoria e aparato se unem, acima de tudo, em benefício de uma experiência de espectador. É como se tudo fosse matematicamente programado para ser o mais eficientemente assimilado, do tempo de cada olhar a iminência dramática das cenas, em uma perspectiva ao mesmo tempo hábil, afável e devastadora.
A autoria é equilibrada por essa visão tecnológica, contemporânea em suas relações com o suporte e a imagem, mas absolutamente aberta a demandas populares, articulando-se numa dimensão que ao mesmo tempo que nunca isola a visão de seu autor, compreende a eficiência do seu produto, integra-se ao seu meio e a engrenagem mercadológica dele. Seria James Cameron o mesmo anti-autor – o artesão freelancer – que David Fincher é nos dias de hoje? Dois diretores em que o estilo fala mais sobre a exigência entretiva do que sobre uma visão individualizada do trabalho, onde a tecnologia funciona, constantemente, em prol dessa reivindicação, dessa fruição do clássico que encontra a solicitação astuta contemporânea. E se Fincher rejeita a ingenuidade – é inegável que vivemos a era das narrativas cínicas -, se ele refunda o clássico com uma acidez que é característica dos nossos tempos, o cineasta, atualmente, é um dos que melhor concilia esse abraço a evolução dos suportes – a assimilação tecnológica como mote dramático atemporal – com uma ideia de produto cinematográfico, de entregar não apenas um filme, mas um trabalho que cumpra seus desígnios industriais na cultura que pertence.
Não que Avatar (2009) não tenha dado uma continuidade digna a esse sonho neoclássico, já que ele até o deslumbra ainda mais – tanto no sentido do tecnologia como um acontecimento (o primeiro grande filme em 3d), como dessa sentença inocente do romance – mas um só filme não pode dar conta de um panorama tão extenso. É claro que existem constantes tentativas de retomar esse ideal, mas diferente de Fincher, diretores como James Gray, Christopher Nolan e Paul Thomas Anderson (para ficarmos numa tríade clássica contemporânea de intenções bastante específicas entre si) estão muito mais empenhados em uma visão individualizada e isolada, em construir a sua própria ideia de clássico partindo de uma inflexão autoral muito incisiva, do que em se integrar a uma demanda. Não é por menos que os três diretores compartilham de um gosto por uma produção grandiosa, mas que conserve a tecnologia em um campo muito mais limitado, prezando por um realismo, efeitos práticos e até uma vontade em perpetuar o suporte da película.
Garota Exemplar (2014) – David Fincher
Cameron e Fincher compartilham de uma iconoclastia quase maquiavélica. São homens que acreditam que para perpetuar alguns mitos é preciso abrir certas concessões. Não existe a romantização do processo (tão cara para Gray), mas a assimilação de uma evolução pragmática inevitável da linguagem, de uma eficiência pela fraude. O que é Titanic se não um grande circo tecnológico encenado na impessoalidade de um estúdio? A renovação vem pelas vias de suas próprias mentiras. E em Titanic, literalmente, do seu próprio ideal de morte. Ao magnificar esse luto, Cameron transforma a memória espectral de uma tragédia e de um cinema em disposição irreverente, em uma luta não pelo que é novo, mas pelo que sempre pertenceu ao presente.
Vinte anos depois, o cenário é deveras menos inocente do que o diretor de 1997 previu, mas sua base motriz tecnológica caminha a todo vapor. Para além de Fincher, cineastas como irmãs Wachowski, Steven Soderbergh, Johnnie To e Robert Zemeckis, apostam constantemente na tecnologia como catalisadora do clássico – talvez não tão empenhados em uma lógica industrial como Fincher, mas até certo ponto tradicionais em seus propósitos. Um elemento agregador de forças que ao mesmo tempo que reitera um dinamismo plástico – até mesmo uma nova concepção de plano cinematográfico – viabiliza um controle obsessivo por cada detalhe posto em tela. O ideal de hoje é um ideal de domínio, de controle pelos processos. Um equilíbrio entre as novidades que motivam novas mediações espaciais e velhos preceitos que mantém viva a disposição de uma boa história a ser contada.