Por Gabriel Papaléo
Em certo momento de Warriors – Os Selvagens da Noite (1979, dir. Walter Hill), todas as gangues se reúnem para um debate numa praça, um amontoado de pessoas ocupando um lugar através da desobediência civil para esclarecer questões éticas de suas vivências enquanto sociedade. O uso da locação no cinema de gênero como forma estrutural de construir mundos através de recortes de lugares reais, especialmente em produções de baixo orçamento, indicam muito uma devolução das imagens ao mundo ao redor, uma forma de abandonar o estúdio para ressignificar o que é cotidiano. Essa prática é velha, transformada em manifesto já nos tempos de Nouvelle Vague, e no limite esteticamente um estúdio pode reproduzir a vivência das ruas de qualquer cidade com rigor imagético devido, mas esse peso simbólico não perde força: levar essa ação às ruas devolve a consequência pras ações que ali enxergamos. Existe algo forte em ver o lugar onde se vive representado em tela, e em acompanhar rostos desconhecidos em um mundo paralelo ocuparem esse ambiente alterado em prol da ação. Filmes como Los Angeles Plays Itself (2003, dir. Thom Anderson) e mesmo Vancouver never Plays Itself (2015, dir. Tony Zhou e Taylor Ramos), o video-ensaio do Every Frame a Painting sobre a falta de representação de sua cidade como ela mesma nas telas, constróem nessa ideia de imaginários cinematográficos a identidade cultural da cidade – e até no que isso tem de opressor.
É da escritora americana Jane Jacobs uma frase que exemplifica o contato humano na cidade como modelo social de resistência: “Modesto, sem propósito e aleatório como possa parecer, o contato com o outro nas ruas é a pequena mudança que faz crescer a qualidade de vida pública”. Nos olhares perdidos da cidade, lugares e pessoas são ressignificados. Historias contidas naquelas pessoas se suspendem todos os dias no caos da rotina da cidade, onde a pressa suprime o contato além do visual, e o cotidiano passa a se formar pelo desencontro. A cidade é representada como ambiente de encontros, ocupada pela ação, caótica pelas consequências. Estar na cidade é uma ideia cívica, um poder de ocupação que transforma um ambiente de trânsito em um lugar de convivência, de identidade cultural. Inserir a ação do filme de gênero na cidade é um manifesto porque traz o peso historico de um lugar habitado, composto ao longo de gerações, detentor de jornadas múltiplas que não temos acesso mas sentimos enquanto observadores.
Nesse sentido, o papel do indivíduo que busca a manutenção de uma certa ordem urbana costuma ser o protagonista eleito tanto por To quanto por Mann. A obsessão pelo controle de encenação dos dois diretores se reflete na própria dramaturgia dos filmes, com seus personagens extremamente eficientes na busca pela volta à normalidade. Em Fogo Contra Fogo e em PTU, dois dos melhores filmes dos diretores, essa compreensão dos personagens em tentar moldar o mundo é expressada na forma que a encenação apropria a cidade na estrutura de travelogue como forma de ocupação, mas sob estéticas diferentes. A Los Angeles de Mann é de locações realistas, luzes naturais, com o mitológico sendo construído com elementos cotidianos, e as luzes revelando a solidão dos protagonistas; a Hong Kong de To trabalha com locações cuja estilização é de um trabalho de marcação de luz muito preciso, de um potencial mitológico de sombras planejadas que ocultam as mentiras da conspiração policial do filme, a ponto de criar uma cidade quase imaginária. Ambos no entanto se aproximam em estética através da materialidade da película, que é responsável pelo palpável das luzes em ambos os filmes, pela forma de estilização dos sentimentos dos personagens através do ambiente – na cidade fantasma de To, na cidade inflada de personagens e espaços de Mann. E quando os diretores migram para o digital, a estética de registro da visão de mundo muda radicalmente – o que era palpável se torna frágil, em escalas diferentes e um tanto complementares.
A difusão das luzes e suas fragilidades.
Em 2004, Colateral inicia o cinema digital na filmografia de Michael Mann, e com ele a configuração visual da cidade muda. Desde o processo cotidiano dos taxistas no início, o detalhe nas mãos nos motores de carro e as conversas dos passageiros triviais no banco de trás de Max, a dimensão que mais importa ao filme é do registro mosaico de uma cidade em movimento. Os lugares populosos, cheios de trânsito e luzes, com o céu no crepúsculo que se despede da rotina dos habitantes de Los Angeles para então cair a noite, e o ambiente então a se esvaziar. Agora não há mais sombras, não há mais esconderijos estilizados; tudo é iluminado, exposto, a cidade luminosa que nunca dorme graças a captação do digital. Mais da metade de Colateral se passa em becos obscuros, em ruas sem trânsito, sempre vigiadas pelas torres iluminadas que têm uma presença imponente no fundo dos quadros mesmo sendo impessoais, monumentos abandonados testemunhas tão impotentes na ação quanto nós espectadores. A cidade de milhões de habitantes pensada em volta do trabalho e do movimento constante, como o matador vivido por Tom Cruise frisa com frequência, palco para a eficiência máxima de suas ações violentas enxergadas por ele apenas como trabalho e cujas consequências são inevitáveis num registro pictórico que carece das sombras de PTU ou Fogo contra Fogo. As sombras só surgem no final, e nunca absolutas, confundem mais que esclarecem.
Como os personagens ultra-eficientes de Mann, existe também em Vincent uma vocação anárquica no combate às instituições – uma contradição sempre interessante nos protagonistas do diretor. Bate de frente com o chefe abusivo de Max, sempre tenta trazer a dimensão enorme da cidade como algo opressor – e mesmo assim trabalha pela ideia de controle, da ordem, uma visão niilista que assimila o impessoal como parte do mundo. Talvez por entender o acaso como agente que o personagem simpatize com o trabalhador comum, com quem está sozinho a vagar numa Los Angeles hostil.
Que a maioria dos obstáculos narrativos do limitado roteiro de Colateral sejam em volta do acaso – a queda do corpo no carro, a chamada de última hora dos policiais, a dimensão pessoal do confronto final, a falta de luz no metrô no clímax – só torna uma decisão arrojada a escolha de Mann em associar a impessoalidade da cidade a um movimento de sorte. É como se a ordem social invisível que regesse Los Angeles fosse menos uma questão de ordem e mais de como lidar com a falta de controle, o improviso como sobrevivência. Vincent tenta a todo momento manter-se no plano, mas é na base do improviso que a progressão dos acontecimentos se dá – como o jazz no clube da cena do terceiro assassinato. E é pelo improviso que ele cai, quando a aleatoriedade da cidade ajuda Max, o taxista nativo de LA que só consegue agir quando as luzes caem completamente, que anda pelas quadras da cidade com a dimensão de fuga para um lugar paradisíaco mas que está destinado a começar seu dia no metrô como qualquer habitante dali que percebe que não está no controle de sua rotina.
Não por acaso Colateral termina no metrô onde começa Fogo contra Fogo; é o seu oposto, afinal. Se lá a alteridade entre oponentes era pela impossibilidade da fuga no aeroporto, aqui é pela impessoalidade do cotidiano. O fardo é ficar na cidade de luzes, onde o homem comum só vence o assassino eficiente ao atirar pelas sombras, no escuro que não está ali para ameaçar ou criar a potência mitológica de uma imagem, e sim por acaso.
Quem vence o confronto é essa aleatoriedade, a competência das pessoas que agem para controlá-la não é páreo para o implacável da cidade digital. É notável o tempo que Mann usa nos filmes para demonstrar o processo de trabalho de seus personagens, porque é aí que entendemos a dimensão trágica das ações que devem provocar e combater, e se percebe que não é suficiente colocar quem é mais apto para o trabalho se a base do confronto, da violência que paira aqueles lugares, acaba arrasando tudo. São personagens frequentemente registrados fora de foco, ofuscados pelas luzes e a fumaça das fábricas, que vivem pela manutenção de uma ordem que se prova falida, e esses são filmes românticos nas perdas pessoais porque não existe contato humano que sobreviva a obsessão de conter o caos, registrado em um digital que só lembra do quanto o ambiente pictórico pode ruir a qualquer momento – e a câmera de Mann está lá para testemunhar o preço que se paga por tentar controlar um mundo frágil.
O digital limpo, a fragilidade no ambiente físico.
Já Johnnie To, que começou a explorar o digital com Don’t Go Breaking my Heart (2014), sai dos ambientes urbanos que costuma construir as sequências de ação de seus filmes de crime e vai para dentro do estúdio mostrar a fragilidade do digital. Nos seus dois últimos filmes, Escritório e Três, o diretor lança mão de uma luz de estúdio que revela a falta de materialidade do ambiente, e concebe toda a estrutura narrativa de obsessão dos personagens em volta dessa nova perspectiva de mundo que ele atribui ao uso do digital.
Em Escritório, a historia transcorre toda dentro de um estúdio que visivelmente emula um galpão, com armações de metal expondo as paredes, as luzes todas artificiais, e uma arquitetura de cidade visivelmente planejada na artificialidade do utilitarismo. Não é por acidente que o visual aproxima tanto de Playtime, outro filme de encenação planejada com detalhismo para expor o humor que existe nessa ilusão de controle, de motor perfeito que rege a geografia de uma sociedade. No filme, todas as relações de poder geram uma melancolia em alguma medida – seja na figura do chefe de Chow Yun-Fat, seja no ato final de retirada da personagem vivida por Sylvia Chang – por conta justamente de uma irrealidade material da cidade que não se comenta, não se torna metalinguagem, e é apenas vista ao redor e sentida pelos personagens. Os quadros de To frequentemente mostram dezenas de funcionários enfileirados, perdidos num coletivo não de pertencimento, mas de obrigação social. A alegoria musical e a encenação marcada exibem todo um esquema dos mecanismos de ação daquela cidade de estúdio, esculpida sob a ideia capitalista do progresso puro, e por isso tão irreal em suas matrizes.
Em Três, a relação é tão radical quanto: o hospital onde quase toda a ação do filme transcorre é feito de corredores iluminados de forma chapada, tudo sempre às claras, sempre revelando a natureza falsa daqueles cenários que escondem as conspirações que são descobertas à medida que os personagens obcecados pelo controle progridem na investigação. A câmera de To passeia pelo hospital em diferentes frentes de ação (o policial de Suet Lam na espera, o policial de Louis Koo lidando com a corrupção, a doutora de Zhao Wei mediando a relação dos criminosos com os policiais) como forma de idealizar aquele amálgama de sociedades distintas em convívio, para construir uma tensão gradativa que vai corroendo essas noções de civilidade aos poucos, mostrando que mesmo num ambiente neutro como o hospital elas são conflituosas.
A mudança mais frontal de Escritório em comparação a Três, no entanto, é na forma que o caos do terceiro ato se configura; a maior violência contra aqueles personagens corporativistas é o rearranjo de suas posições, um fim de relações mediadas pelos contratos, que acabam consumidas porque no arranjo capitalista as mudanças não são físicas no ambiente, mas no crivo social. No hospital de Três, a ordem é uma questão palpável – o silêncio é a regra, a calma uma forma de exercer a civilidade ali dentro – e a subversão disso, quando as coisas realmente saem do controle, é exercida através do tiroteio, do confronto através da violência física – o plano-sequência do clímax sendo a síntese disso, uma câmera lenta que evidencia uma organização meticulosa de um caos absoluto.
Se os adeus em Escritório são cerimoniosos nos seus gestos, em Três são visivelmente destrutivos. O que aproxima os dois filmes é o registro digital dessas luzes, desses ambientes falsos colocados numa perspectiva de ordem/controle vs. caos/reorganização. Enquanto espectadores intuímos as dissonâncias nos ambientes através da luz marcada e dos limites frágeis das placas de metal do galpão de Escritório e das paredes divisórias do hospital de Três – e o choque é maior por conta da assimilação dessa mesma afirmação nunca ser discutida pelos personagens. A conspiração é textual como em muitos filmes de To (Breaking News, Drug War, Vingança, A Missão, e o próprio PTU), mas é na desconfiança do registro daqueles ambientes que frequentamos que o diretor organiza novas formas de alteridade com os personagens que acompanhamos, como nós tão reféns de estrutura programadas socialmente, do preço que pagam pela manutenção do poder.
Seja no estúdio estilo Playtime (1967, dir. Jacques Tati) em Escritório, ou no hospital de novela de Três, em diferentes vias, sob o digital de fragilidade pictórica ou de revelação da falsidade de uma luz marcada no ambiente, o cinema de To e Mann trabalha nesses filmes de crime a ideia de uma sociedade do capitalismo como ambiente obsessivo falso. O controle é apenas um dispositivo ilusório cujo interesse é apenas dos poderosos, sejam de corporações criminosas legais ou ilegais – e cabe ao indivíduo se impor diante da ordem para sobreviver a esse acaso. É o trem em Colateral, transitório e implacável, palco de um mundo que vê o indivíduo como indiferente, ou sala de operações que é destruída a bala em Três, ambiente social seguro fragilizado em segundos. O jazz e o inesperado.
A luz digital é aqui, portanto, um sinônimo de fragilidade da compreensão de ordem no mundo dos personagens. Um lugar de instabilidades, como os prédios idênticos em metrópoles diferentes de Hacker (2015, dir. Michael Mann), os corpos disformes nos pixels da boate que Crockett e Tubbs entram em Miami Vice, ou a baixa definição das multidões refletidas nos vidros do táxi em Colateral. Os rostos são superfícies vivendo num mundo prestes a ruir como a imagem digital que os capta. Não por acaso, o que afina os finais desses filmes é a imposição do caos, de perdas emocionais. Não existe controle formal como antes em um mundo de multiplicação de imagens por dispositivos mais acessíveis, e, querendo ou não afirmar preceitos antigos do formalismo cinematográfico, deve-se levar em conta que a imagem enquanto registro (e especialmente percepção) mudou.