EDITORIAL: COMO ENGANAR A MORTE

Por Arthur Tuoto

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Quando André Bazin afirmou que “o cinema ainda não foi inventado”, o crítico francês sentenciava no horizonte de um ideal realista inalcançável a impossibilidade do seu próprio objeto. Ao mesmo tempo que o cinema progride cada vez mais em relação a uma mediação  espacial realista (o som, a cor, o 3d), ele invariavelmente descaracteriza o seu suporte (a tv, o vídeo, o virtual). Ou talvez, inversamente, se configura com mais expressividade dentro de sua própria natureza heterogenia. O cinema morreu ou está simplesmente nascendo em uma perspectiva híbrida que é de sua estima propriedade?

A especificidade, ela sim, está morta. A saturação – de suportes, de linguagens, de jogos entre os mais variados elementos – estabelece uma relação antagônica que se alimenta das próprias crenças. Se por um lado a iconoclastia e a hibridização dão o tom de uma infindável dimensão de obras que tem na desconstrução o seu mote de morte, de reestruturação urgente, de relocalização obsessiva, por outro “o classicismo pertence ao futuro”. Em uma mesma medida que Godard usa a tecnologia – a maior evidência dessa progressão em perspectiva ao mito baziniano – para desvirginar o cinema de seus suportes, livrá-lo de um estado intocável e situá-lo numa dimensão que é doméstica e libertária, que é subversiva pelos próprios meios, James Cameron tem nesses mesmos avanços a oportunidade perfeita para reiterar a universalidade do clássico, o ideal blockbuster anti-doméstico que encontra no gigantismo de uma dramaticidade ancestral a sua comoção atemporal. Godard e Cameron são mitos que se completam dentro da unidade de duas trajetórias opostas que buscam a mesma coisa: enganar a morte.

O cinema articula, em plena e constante jornada, antigas e novas eras tecnicistas que se depositam ao longo de um século e pouco. Perdemos a especificidade, mas ganhamos uma ontologia tão variada que mal cabe em si. Uma maleabilidade de universos que, hoje, produz a sua própria realidade, concebe a sua própria experiência imersiva que tem na descaracterização variada do seu suporte uma reinvenção imprescindível.

Existem aqueles que buscam um retorno, um resgate clássico que, diferente de Cameron, encontram em um purismo das velhas formas uma relação artesanal com o seu objeto. O caso é que a busca idealista não deixa de ser a mesma: ainda se salva pela aparência. Seja Griffith, Godard ou um estatuário egípcio, nossa natureza de eternizar é uma natureza do engano, de fraudar o tempo e forjar a vida pela imagem. Essa falsa polarização (a tecnologia e o artesanal)  busca justamente atender a variações de um mesmo mito inalcançável. A invenção do cinema está na sua constante reinvenção, na sua assimilação divergente. O que buscamos, com essa edição da Multiplot, é pensar e repensar os limites dessa falsa morte. Um fim que pode até ser concreto em relação a uma perspectiva tecnicista (os suportes, os meios), mas que encontra na utopia da sua própria impossibilidade (a sentença baziniana) um incessante itinerário de recomeços.

Enfim, não é precisa tomar um lado quando todos os mestres buscam o mesmo santo graal. Entre rituais de reverência, destruição de ícones e conversas com os mortos, fraudar a tragédia desse fim tem se tornado nossa maior especialidade. Reconhecemos a iminência dessa sorte de recomeços e por isso mesmo nosso trabalho aqui é o de evidenciar – celebrar – uma paisagem radical. A renovação tanto a partir de uma intervenção direta do que é estabelecido, como de um retorno reverente, de um resgate do passado que sempre pertenceu ao futuro (o clássico, outra vez). Entre vencedores e vencidos, deixar o cinema morrer é deixar essa transformação acontecer.  Uma operação que tem na dimensão histórica não apenas a apreensão simbólica do fim dessas eras, mas a perspectiva próspera de uma constante reescrita.

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