Por Diogo Serafim
Dialetizar sem esperança de síntese
Era preciso deixar a morte insistir na imagem. Abrir a imagem ao sistema da morte. (…) entre a artimanha e o risco, entre a operação dialética e o sintoma de uma rasgadura, entre uma figuração sempre firmada e uma desfiguração que sempre se interpõe (…) existe um lugar, um ritmo da imagem no qual a própria imagem busca algo como o seu desabamento. Então estamos diante da imagem como diante de um limite escancarado, um lugar que se desconjunta. O fascínio aí se exaspera, se inverte.
Georges Didi-Huberman, Devant l’Image
O não-saber desnuda. Essa proposição é o ponto culminante, mas deve ser entendida assim: desnuda, portanto eu vejo o que o saber ocultava até então, mas se eu vejo eu sei. De fato, eu sei, mas o que eu soube, o não-saber desnuda novamente.
Geoges Bataille, L’expérience Intérieure
Reside na alma um ímpeto ascético que se estabelece no desejo de querer superar o que vemos e o que nos olha. Ir além do que nos é apresentado. Se o cinema é a transposição de um estado de espírito para um fluxo de imagens, no que consiste, propriamente, o ato de assistir a um filme? É o fenômeno da ilusão da experiência e, como fenômeno, não se apresenta necessariamente como um código a ser destrinchado, e sim muitas vezes como um mistério a ser sentido, fundamentalmente consolidado como expressão e não como discurso. Consiste no evento ultrapassando o significado, podendo até se apresentar como frustração, mas uma frustração bastante específica que jamais se resigna, que sempre instiga e impacta.
Devemos buscar uma fenomenologia da imagem que se apresente para nós como abstração plena da realidade, sem buscar necessariamente uma significação determinada pela razão, mas uma absorção sensível transcendental e arrebatadora capaz de elucidar todos os seus predicamentos. É como Glauber Rocha afirma: “para mim cinema é imagem e som, o resto pouco importa. É o drama existindo na dinâmica visual, diferente do drama literário, contado. A câmera não é narradora de fatos, mas instrumento de criação. O cinema deixou de ser romance para ser poesia, e quando você escreve uma poesia, um conto ou faz um filme, não faz mais que materializar um sonho, materializar um produto do inconsciente que não é controlado pela razão”. Ali reside toda a força da expressão, a inelutável modalidade do visível¹ que se manifesta tanto como fisicalidade como abstração. Aqui valem os escritos de Merleau-Ponty: “todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele”.
Isso não significa necessariamente uma recusa à hermenêutica. A fenomenologia pode se apresentar ou aliada a uma abordagem mais fechada, baseada nos códigos estabelecidos pela linguagem fílmica, ou como uma interpretação mais subjetiva e amorfa, que se apresenta a mim não por meio de predicados definidos, e sim como lembrança, afeto, enlevo². A experiência do cinema não como análise determinística de um sistema fechado, e sim como um sistema pessoal, amplo e imprevisível, um processo dialético que nunca chega a uma síntese, mas sempre se descontrói, se reconstrói, desaba e ergue-se novamente.
A morte do cinema como o paradigma maior da imagem, a morte como um arcabouço das imagens, onde a sua política se sente, não se explica. Um ato extremista de fé, tematizar a morte como rasgadura e projetá-la simultaneamente como meio de recoser todas as rasgaduras, de compensar todas as perdas. Maneira de incluir dialeticamente a sua própria negação, fazendo da morte um rito de passagem, uma mediação rumo à ausência de toda morte3.Permitir a morte da comunicação para o nascimento da experiência. O filme vive em mim, eu entendo não porque me foi dito, mas porque senti na pele o fenômeno.
O cinema nascendo do trauma, do momento em que permito perder-me a mim mesmo. A obra como uma construção absoluta que se apresenta a mim como recordação da minha própria experiência sensível, onde confronto a minha existência com a imagem que me observa de volta.
Devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.
Feche os olhos e veja
A imagem dela entrara na sua alma para sempre, e palavra alguma teria quebrado o sagrado silêncio do seu arroubo. Seus olhos o tinham chamado e sua alma saltara a tal apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida para além da vida!
James Joyce, A Portrait Of The Artist As a Young Man
O cinema sempre esteve em algum grau subordinado a uma manifestação natural. Ora, filma-se o que se vê. Isso não está necessariamente associado ao quão manipulada foi a mise-en-scène ou a dramaturgia, e sim à simples ontologia plena da matéria que nos é apresentada. Lisandro Alonso se abre em seu filme A Liberdade (2001) para essa ontologia, aqui transposta como rotina, como movimento, como contemplação. Logo nos é apresentada a solidão do lenhador Misael conforme ele vai realizando suas tarefas diárias. Não cabe aqui definir significado às atitudes do nosso protagonista – basta dizermos por exemplo que quando, após terminar seu almoço e pôr-se repentinamente a observar o horizonte com o olhar moroso, Misael vai até sua barraca, deita-se em sua cama e descansa com o mesmo olhar desolador e enigmático, olhando para além da câmera, como que para mim. E eu também me senti sozinho.
Alonso logo em sequência já me reconforta: desliza sua câmera da escuridão vazia da barraca (do eu) até a imensidão holística da natureza. As árvores, os pássaros, a terra, o céu. E eu me senti parte daquilo. Quando Misael lava suas mãos, eu lavo as minhas, quando ele seca seu rosto, eu seco o meu. Quando Misael liga para Juan e pergunta de Micaela e Roxana, sentindo saudade das mulheres de sua vida, eu me lembro e também me dói. Eu também sinto saudades.
A sequência mais comentada do filme costuma ser a final, na qual Misael olha para a câmera, conversando com a equipe técnica do filme, das mais impactantes quebras de quarta parede na história do cinema. É quando Alonso se mostra na realidade como um fabulista de olhar retratista, é quando percebo que aquele universo no qual me adentrei tão absolutamente, que me entreguei, a personagem a qual acompanhei tão diligentemente não passa daquilo: uma personagem. Uma imagem. E isso torna todo o turbilhão de sentimentos que veio antes ainda mais devastador e presente. Quando a representação tem a força de fenômeno. O cinema faz isso: reconcilia a soberania do Eu com o infinito do Outro. Porque a narrativa do Outro reside em mim. E ali se dá a nossa própria narrativa.
O filme ‘tabula rasa’ (1989), de Peter Tscherkassky, é um filme seminal no sentido em que a morte do cinema é aqui a morte da ilusão do controle. Pode funcionar muito bem como defesa dos estudos de Metz também – porém o que realmente me interessa aqui não é o discurso simbólico do cineasta, e sim como ele é constantemente abstraído de sentido pela câmera e no fim se reapresenta na figura do corpo feminino. Apresenta-se não como linguagem, mas como expressão. Eu não posso categorizar no que consiste o imaginário do autor, mas posso reorientá-lo a meus termos, o meu inconsciente sendo o discurso do Outro, o meu desejo sendo o desejo do Outro. Empregando conceitos da psicanálise lacaniana, Tscherkassky tenta aqui desestruturar e simultaneamente reconciliar o real, o simbólico e o imaginário, desfazendo e refazendo constantemente este nó borromeano, sistematicamente rompendo com cada um destes conceitos para dissociá-los e associá-los em seguida. O objeto de desejo que quando finalmente se apresenta ao alcance de minhas mãos, desaparece, se esconde, continuamente foge do meu controle. Quando a ilusão do cinema desfalece e o que resta é apenas a constatação de que tudo não passou de abstração. Mas a dor permanece. A imagem dela resiste na minha lembrança. Mesmo que sempre se deteriorando, cada vez mais distante. O filme consiste em uma luta contra o esquecimento, o corpo da moça constantemente me sendo negado em sua totalidade até que ela desaparece de vez da minha memória. É a consolidação da frase final do conto O Aleph, de Jorge Luis Borges: “A nossa mente é porosa para o esquecimento, eu mesmo vou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços dela”.
Nos dois exemplos de filmes acima a minha experiência se deu basicamente em um processo de identificação, com o protagonista de A Liberdade e em seguida com o autor (Tscherkassky) e sua expressividade. A identificação no cinema geralmente se dá nessa alternância constante entre o Eu e o Outro em uma experiência lacaniana/lévinasiana de experienciar o amor e a alteridade.
Contanto, no filme Não é Um Filme Caseiro (2014), propõe-se não propriamente uma experiência por identificação, mas uma experiência de aniquilação do Eu. O filme não precisa necessariamente me abarcar como uma figura ativa de identificação com Chantal, sua irmã ou sua mãe (por mais que haja tal empatia), mas sim como uma entidade que é naturalmente invasora naquele meio5. A identificação se dá com a matéria fílmica, com a análise das possibilidades políticas de um exercício tão extremo. O que há para dizer? Vale a pena discursar sobre o que o filme propõe acerca do papel da tecnologia nas relações humanas atualmente, sem dúvida. Sobre como a árvore presa ao chão, resistindo os fortes ventos, serve como analogia à mãe da diretora e a ela própria. E podemos tentar compreender o que Chantal quis dizer com “por isso que ela é assim” quando a funcionária da casa a pergunta sobre sua mãe. O que ela quis dizer com assim?
Eu sei, eu compreendo perfeitamente, mas não me atrevo a explicar. A linguagem não abarca. Não me atrevo sequer a pensar excessivamente sobre o tema por saber que adentrei um campo hermenêutico muito maior do que eu – o do holocausto, o da perenidade do trauma, onde a compreensão não se dá por linguagem, e sim por alteridade. Quando a face do Outro me assola, me aniquila, pois ela representa ali o maior dos atos políticos.
Seria interessante também comentar sobre a obra recente de um dos mais geniais diretores do século XX: Jean-Marie Straub. Após a morte de sua esposa Danièle Huillet, espetacular diretora e sua companheira em praticamente toda a sua filmografia, surgiu um aspecto muito particular e recorrente em seus filmes desde a tragédia a qual ele foi submetido. Reside nas imagens de filmes como O Joelho de Artemide (2012) e Diálogo de Sombras (2013) um desespero latente escondido na aparente serenidade das imagens. Reside sobretudo uma avidez desesperada em recuperar a imagem da esposa falecida, uma luta impossível contra a impermanência do sonho, a necessidade de recuperá-lo pela abstração do cinema.
A morte do cinema é a morte deste como meio de comunicação direta, como manipulação, a morte de um discurso materialista hierárquico e o nascimento do meu protagonismo como espectador. O que eu depreendo está de acordo com o que floresce em mim, não com o que me foi imposto. Devo orientar os misteriosos frêmitos de beleza que ecoam em mim, sem esperança de síntese, onde eu transcendo o espectro e finalmente me uno com o holismo intangível do Outro. Quando o fenômeno transcende o discurso. E finalmente o cinema pode acabar se tornando algo como a cena final do filme de Edward Yang Mahjong (1996), quando em um caos capitalista de cores, movimento e anonimato, sem nenhum nexo causal plausível, duas pessoas possam se encontrar e, em um ato de fé, se apaixonar.
- James Joyce, “Ulysses”.
- Aqui talvez valha uma análise mais cuidadosa acerca da constituição neurológica do que chamamos de sentimento e razão e como essas faculdades se associam, temas brilhantemente trabalhados por António Damásio em seu livro “O Erro de Descartes”.
- Georges Didi Huberman, “Devant l’image”.
- Georges Didi-Huberman, “Ce que nous voyons, ce qui nous regarde”.
- Percebe-se aqui o que poderia gerar um dos maiores problemas estruturais nessa teoria fenomenológica do cinema: estar preso a um filme, estar à mercê de seus valores políticos e uma necessidade de buscar empatia nas figuras das personagens, nas quais deveria supostamente me espelhar/admirar/personificar enquanto espectador. Ora, isso não é necessário, posso fazer uso da fenomenologia da matéria para criticá-la epistemologicamente, uma crítica aliada à essa apropriação sensível da apresentação em questão. Eu não estou à mercê de nada, a matéria está ali para me fazer repensar minhas convicções, para me apresentar novos conceitos e possibilidades sensíveis, claro, mas seus predicamentos também podem ser recusados ou reorientados por mim.