Por Virgilio Souza
Um trio de profissionais do audiovisual dividiu o palco da Universidad del Cine, em Buenos Aires, no dia 20 de abril para discutir a realidade do cinema brasileiro sob diferentes pontos de vista. A reunião ocorreu no âmbito do Talents Buenos Aires, programa realizado através da parceria entre a universidade, a Berlinale e o BAFICI, maior festival de cinema independente da Argentina. O assessor internacional da Ancine, Eduardo Valente, a produtora Vânia Catani e o realizador e programador Gustavo Beck falaram a um grupo de quase 72 jovens cineastas, atores e críticos da América Latina, selecionado para o evento dentre centenas de inscritos. Naturalmente, a discussão envolveu questões um tanto óbvias para aqueles envolvidos no mercado nacional, mas se mostrou também capaz de oferecer ideias interessantes sobre a inserção do cinema brasileiro além de nossas fronteiras.
Assumindo uma postura mais prática e oficial, Valente deu início ao debate apontando a coprodução como “caminho natural para que o Brasil se faça internacional”, seguindo sua exposição com uma série de dados indicativos do avanço nessa área – do significativo aumento no número de produções realizadas em parceria com países vizinhos à crescente porcentagem de participação de filmes brasileiros em termos de bilheteria, passando pela apresentação de nova convocatória da Ancine voltada para a cooperação regional, a ser lançada no início de maio.
O principal intento da agência nesse segmento, segundo ele, seria estimular os produtores brasileiros a explorar as possibilidades da América Latina, indo além e até mesmo facilitando a participação em festivais e em laboratórios de projetos, habitualmente vistos como um meio rápido e direto de acesso a outros territórios e circuitos, sobretudo por realizadores mais jovens como os ali presentes. O exemplo mais recente e talvez mais extremo citado foi o recém selecionado para a Semana da Crítica de Cannes, La Patota, longa dirigido por Santiago Mitre e realizado como coprodução majoritária argentina através de parceria entre a agência brasileira e o Instituto Nacional de Cine y Artes AudioVisuales (INCAA).
A coprodução foi tratada a um só tempo como oportunidade e desafio para o Brasil, país que, apesar dos esforços recentes, ainda se encontra até certa medida ilhado no continente por distintas razões, dentre os quais Valente apontou idioma, cultura, extensão geográfica e a existência de um público muito grande para conquistar: segundo ele, “Fazer com que as pessoas vejam filmes brasileiros é uma luta em si mesma”.
Vinculada ao longa de Mitre por meio da Bananeira Filmes, uma das vencedoras do mencionado edital da Ancine para o fundo de coprodução com a Argentina, Vânia Catani fez coro ao raciocínio, afirmou que o cinema brasileiro luta para ser respeitado até mesmo dentro do Brasil e reconheceu avanços importantes, louvando o esforço da agência. Segundo ela, porém, a ideia de integração regional não é somente um tema econômico ou de fomento por meio de editais: é preciso um bloco forte cultural e politicamente para mudar situações que não dependem somente de institutos de cinema, tais como a enorme e talvez exagerada burocracia que impõe restrições a parcerias em território estrangeiro (“Mandar dinheiro para um filme [fora do país] é como mandar dinheiro para uma fábrica de sapatos”, disse, se referindo a questões legislativas, tributárias e cambiais que impõem dificuldades à própria lógica de fomento).
Ainda no que diz respeito à superação de tais fronteiras, a produtora afirmou que, em festivais fora do continente, “Os europeus nos tratam como um bloco, mas há pouco tempo nós [profissionais latino-americanos] sequer nos conhecíamos”. De acordo com ela, beira o absurdo ir à Europa e não conhecer os realizadores argentinos que ali estão, por exemplo, o que reforça a importância da convivência e do contato durante processos de coprodução. Nesse sentido, citou a experiência de trabalhar ao lado de Lucrecia Martel na adaptação para o cinema de Zama, livro do também argentino Antonio Di Benedetto: “Trabalhamos como se fosse um filme nosso porque [sentimos que] era um filme nosso”. Brincando com o próprio discurso, realizado entre o espanhol e o português, Catani ainda argumentou a respeito da necessidade de se falar o mesmo idioma: “É bom que falemos inglês com quem não fala nossa língua, mas [aqui, entre latino-americanos] é político que se fale até mesmo o portunhol”.
No terceiro segmento da mesa, Gustavo Beck se apresentou sob a premissa de que “fazer cinema exige uma postura” sobre qual cinema se quer fazer, com quem se quer trabalhar e para quem se quer mostrar. Seguindo esta linha, traçou alguns dos problemas enfrentados por realizadores brasileiros no momento de se projetar fora do país: a falta de calma para amadurecer determinados projetos, a ideia de que certas plataformas procuram apenas o que é mais facilmente vendível internacionalmente e a percepção de que muitos cineastas parecem não ver cinema antes de fazer cinema – algo que, pensando em uma inserção regional e em consonância com o argumento de Catani a respeito da partilha de experiências e olhares na América Latina, parece ainda mais relevante*.
Também cineasta, Beck argumentou sobre a importância do timing e do posicionamento de certas produções no circuito de festivais: segundo ele, o cineasta deve buscar “perceber qual o momento certo para entregar um filme ao mundo” e em quais centros procurar produzir e exibir seus trabalhos. O raciocínio parte da ideia não apenas de que há perfis diferentes em termos de seleção e programação, mas também que alguns laboratórios de desenvolvimento modificam trabalhos para aumentar suas possibilidades de vendas: “existem advisors que fazem os filmes que querem exibir”, disse.
Entre questões de ordem prática e intervenções mais elementares, a discussão revelou a percepção de que há potencial e iniciativa no projeto de inserção internacional – especificamente latino-americana – do cinema brasileiro, ainda que por vezes incerto e tateante, e que os desafios impostos pela condição de insulamento não devem ser superados na busca vazia por universalidade, mas por denominadores comuns com os países vizinhos que permitam conciliar inserção e manutenção dessa identidade.
* Aqui, a discussão remete a alguns dos pontos trabalhados por Nicole Brenez com relação a world cinema no início do texto “El cine político hoy: las nuevas exigencias”, disponível em espanhol na revista La Fuga.