A Garota que Anda à Noite (Ana Lily Amirpour, 2014)

Por Pedro Tavares

No texto Cabra Marcado Para Morrer, Cinema e Democracia, presente no livro Eduardo Coutinho (Org. Milton Ohata, Editora Cosac Naify, 2013), o psicanalista Tales A.M. AB’Sáber afirma sobre Cabra Marcado Para Morrer (1984): “Pode-se argumentar que o filme, realizado por volta de 1980 até 1984, trazia em seu estilo o espírito mais forte da tomada do espaço público pelos novos sujeitos do tempo (…) estava comprometido em recompor a história das gerações passadas”.

Partindo da possibilidade comparativa na postura e visão do tempo abordada por AB’Sáber, A Girl Walks Home Alone At Night faz, em sua esfera, protegido pela justificativa de gêneros cinematográficos, a dominância das ruas do país como resposta à era Xá Mohhammed Reza Pahlevi, questionando assim o futuro do Irã, ainda assombrado pela ditadura religiosa. A primeira noção de subversão por parte do filme da jovem Ana Lily Amirpour é de se tratar de uma apropriação generalizada de pilares do cinema americano partindo de situações inóspitas que traduzem a urgência de uma nova interpretação dos tempos, fazendo do espaço público um local de assombrações.

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A Girl Walks Home Alone At Night a princípio se nega a mostrar seu cerne e coluna, ao contrário ao filme de Coutinho. O primeiro ponto na construção da atmosfera de terror é a sugestão do que se deve acreditar no filme. No caso, para crer em vampiros, deve-se crer em outras aberturas, dentro e fora do gênero e narrativa. Ana Lily Amirpour exibe penumbras e um bairro entregue ao mal, o batizando literalmente de “Bairro do Mal”. O filme se passa em ruas vazias, com poucas sequências internas, referente a um mundo frio e propenso à violência e traições – arquétipo do Western, influência clara de Amirpour. A câmera da diretora encontra apenas homens e a única mulher, obviamente, está a serviço do prazer masculino e da consequente opressão que a cultura por tantos anos alimenta. É o ponto de partida para o exercício de contração que o filme faz e se resume. Não existem pontos ideais para expurgar a tensão que Ana Lily Amirpour constrói através da figura de uma vampira – existe, no caso, um retrato rotineiro do que é o terror, sempre transpassado para a ótica feminina.

Trata-se, portanto, de um filme de vingança plena que traduz a resposta para a tortura que mulheres são submetidas diariamente no Irã, sempre, claro, na posição do anti-herói. Em diversas oportunidades, a diretora dialoga com a cultura norte-americana, em especial a da cultura white trash – adictos e traficantes, consumo e dividas –, talvez usada como metáfora espaçada, porém pertinente no filme como afronta. Há uma série de quebras de tradições, regras e ideais iranianos dentro de uma linha mais interessada na simbologia do medo como campo perfeito para análise do que é, de fato, o terror.

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A Girl Walks Home Alone At Night sugere a desconstrução de um gesto subversivo às convenções e à História (em especial, a cinematográfica) do Irã, mas não do gênero. Ele é feito como um esbarro proposital no cinema independente americano em seu viés dramático e regrado a respeito de um filme de suspense moderno. Também com o suporte ideal para a noção de uma trama que estará sempre em crescendo – muitos ruídos, planos estáticos, a rápida tradução da simbologia de cada personagem -, o filme escolhe a quem castrar; Mora aí o trunfo do longa de Amirpour. Como um soco trocado com o espectador, o filme se justifica pela dor, que talvez não se manifeste como o sensacionalismo gosta no Bairro do Mal, mas o suficiente para e apontar para o monstro real e afirmar sua sobrevivência. Amirpour usa a mesma perspicácia e dormência de personagens de alguns de seus referenciados (Jim Jarmusch, John Cassavetes) e não oferece a solução – sugere o placebo que está em todo tipo de filme, dos americanos aos iranianos, como um simples gesto de lamentação sobre caminhos aparentemente tão distintos, mas que levarão ao mesmo lugar.

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