A Ponte das Artes (Eugène Green, 2004)

Por Robson Galluci

Um jovem resolve se suicidar. Nós testemunhamos os preparativos, vemos quando ele coloca uma gravação do Lamento della ninfa, de Monteverdi, como acompanhamento musical para sua morte, quando se inclina para o fogão e libera o gás. Os planos se sucedem, a porta entreaberta, a janela, o corredor, o painel do fogão, e a música preenche os espaços enquanto uma vida se esvai. Nós conhecemos as circunstâncias dolorosas e trágicas que envolvem a gravação que toca, a sensação de vazio e falta de significado que assolava a solista assim como assola o personagem desta cena. Parece que o filme se encaminha para uma nova tragédia, mas a vida que irradia da música, e sobretudo da voz de Sarah, não obstante sua tristeza atordoante, é irresistível, e o jovem Pascal desiste de sua tentativa, corre até a janela para recuperar o fôlego e, enquanto a música continua tocando, e com os olhos ainda lacrimejantes, ri.

A Ponte das Artes não é apenas o local onde ocorrem eventos centrais da trama; muito mais que isso, o título do filme expressa essa capacidade das artes — e, de forma privilegiada, da música — de estabelecer conexões entre pessoas, não importa quão perdidas estejam, não importa que de espaços e tempos cuja separação parece irremediável, de fazer visualizar, justamente através desse encontro, uma harmonia até então secreta que se configure como um sentido do mundo, da vida. Para isso a câmera invade o espaço mais íntimo que é a troca de olhares, alternando planos em que dois personagens que estão frente a frente são enquadrados frontalmente e olham diretamente para a câmera. Não se trata de uma perspectiva subjetiva, e sim de quebrar a encenação onde é necessário para inserir o espectador no próprio centro dessas linhas de força que são os olhares dos personagens de Green, linhas que transmitem um sentido possível. Quem assiste a um filme como esse ou A Religiosa Portuguesa não é convidado à identificação com um personagem, mas a ser mais um, que recebe esses olhares e, principalmente, olha. Porque, para Green, o olhar é expressivo também quando não se dirige a ninguém em particular, mas nesse caso o importante não é exatamente o que se vê — em muitos casos, tanto aqui quanto no filme seguinte do diretor, o que os personagens filmados de frente veem é alguém cantando ou executando uma música, um disco tocando na vitrola —, mas o que exprime o olhar de quem vê. Na única instância de A Ponte das Artes em que pessoas assistem a algo — um espetáculo de nô —, a informação visual é negada ao espectador, sendo substituída por intertítulos que descrevem a trama da peça e se alternam com longos travelings que passeiam pelos rostos e olhares da audiência. O que exprime o olhar do espectador enquanto ele vê A Ponte das Artes? A trama da peça ecoa a do filme, e talvez o mais próximo que se pode chegar de uma resposta seja essa cena.

O poder que Green enxerga na música de despertar essa categoria de olhar do qual emerge um sentido e, além disso, de fazer com que dois desses olhares se encontrem é absolutamente ilimitado e indomável. Guigui, um personagem mesquinho que tenta matar nos outros a música que não encontra em si mesmo, e nisso, segundo Green, acaba por abrir mão da própria humanidade (“Pensei que o chamavam de inominável porque você era excelente. Mas é porque você não tem um nome”, diz Pascal a ele quando enfim se encontram), e outros representantes de uma certa classe artística e intelectual que se caracteriza por sugar a vitalidade da arte para substituí-la por mero dogmatismo teórico, conseguem levar Sarah ao seu limite e fazê-la desistir, mas sua música segue viva e incontrolável e põe em curso a jornada de Pascal que culmina no abraço impossível na estupenda cena que toma lugar na Ponte das Artes.

Green não defende uma arte de improviso — nem poderia, dado o rigor de sua mise en scène, que evita todo tipo de manipulação —, mas sim uma arte que, evitando não só a frieza mas também o sentimentalismo barato e indigente de obras que se ancoram na pieguice, não abra mão do impacto genuíno que pode causar, uma arte que sobreviva dentro de seu destinatário, assim como a música de Sarah sobrevive em Pascal e Manuel. É através dos olhares deles dois que o Lamento della ninfa é novamente ouvido pelo espectador, num dos raros momentos de uso de música não-diegética no filme (o único outro é durante a abertura), conduzindo aos créditos finais. Pouco antes, na Ponte das Artes, quando um madrigal do século XVII une, contra a “surda Inteligência humana”, uma mulher que se matou e o homem cuja vida ela salvou através de sua voz, a música é definida como o tempo entre dois silêncios em que pessoas se encontram, e de onde flui a única realidade que importa. O filme de Eugène Green é, à sua maneira, a encenação desse encontro, de que o espectador é convidado a participar; formas feitas de luz e sombra entre uma escuridão e outra, em que se pode descobrir, como descobre Sarah, que, apesar da opacidade do mundo, o que é belo não está além de nós.

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