Estrada Perdida (David Lynch, 1997)

Por Vlademir Lazo

Se existe algo em comum entre os fãs e detratores do cineasta David Lynch é o de que a sua filmografia se divide entre antes e depois de Estrada Perdida. Talvez não tanto um divisor de águas em sua obra, mas um ponto de equilíbrio entre essas duas “fases”. Um ponto de chegada decorrente de tudo que havia feito até então, representando uma evidente depuração plástica e até conceitual do que ele vinha construindo desde os seus primeiros curtas, e também um novo ponto de partida como uma espécie de recomeço para o que ele poderia realizar dali em diante. É também possivelmente o seu filme mais bem-acabado — junto com Uma História Real —, com uma maturidade que atinge uma plenitude que apenas se esboçava em trabalhos pregressos, e que formam a síntese, não tanto das obras anteriores, mas sobretudo dos filmes seguintes, das questões narrativas e estéticas do seu cinema. E também sem uma certa irregularidade que os não-fãs poderiam apontar em seus dois mais recentes, Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos, que a despeito de poderem ser considerados belos filmes, apresentam em suas estruturas notas dissonantes e auto-indulgência por parte do realizador (especialmente o último).

Jean-Luc Godard costumava dizer que um filme deveria ter começo, meio e fim — mas não necessariamente nessa ordem. Não são muitas as obras a que a sentença acima se aplicaria tão perfeitamente quanto Estrada Perdida, que corre de maneira aparentemente linear, mas com passado e presente suspensos no tempo. Muitos poderiam apontar como confusa a sua história, em contrapartida ela também pode ser considerada muito simples, só que trabalhando relativamente fora de certa ordem cronológica em torno de elementos pulps corriqueiros em qualquer narrativa policial de literatura barata, que não por acaso serviram de base para o cinema americano formular o gênero noir.

Com alguma frequência somos apresentados a algum filme contemporâneo dito neo-noir, por repetir em sua trama características do gênero dentro de uma roupagem moderna. Estrada Perdida viaja mais longe com o procedimento, não tratando o gênero apenas como homenagem e reverência, ao subverter e levar a uma dimensão outra as regras básicas da escola clássica do noir (Femme Fatale, de Brian De Palma, à sua maneira, também faria algo semelhante). Temos no filme de Lynch os principais ingredientes que conhecemos do noir: uma atmosfera marcante e sombria, o predomínio de uma narrativa escura, um universo amoral, sensualismo, femmes fatales, longas estradas, homens enganados, investigação policial, identidades duplas, vilões caricaturalmente durões, etc.

O que Estrada Perdida recupera é o que há de absurdo dentro da própria essência dos noir, cujas características foram ao longo dos anos tão repetidas e assimiladas pelo cinema que acabaram se tornando críveis demais nos fazendo esquecer o quanto aqueles filmes eram fantasiosos e pouco realistas. O filme de Lynch nos devolve esse olhar e sensação construindo um filme-sonho como poderiam ser chamados muitos dos noirs, não no sentido de algum dos personagens estar sonhando, mas do filme em si como um grande sonho para o espectador que o assiste, e que precisa atar as pontas dele para formar o quebra-cabeça de um labirinto sem fim que se fecha e ao mesmo tempo se abre em várias direções (e gêneros) como esse Estrada Perdida.

O filme começa e termina na estrada vazia, em meio à espessa noite, e percorrida por um carro cujos faróis iluminam o pouco que nos é permitido ver naquela escuridão. Conhecemos Fred (Bill Pullman) e Renne (Patricia Arquette) casados e com o relacionamento em crise, com ele suspeitando de traições dela, e a situação se agravando com as fitas de vídeo que misteriosamente recebem. Voyeurismo, incertezas, mistérios, invasão de privacidade, a câmera intrusa: as fitas reproduzem imagens feitas dentro da própria casa deles, filmadas não se sabe por quem e sem pistas também de como houve os acessos à residência. As circunstâncias levam ao aparecimento da esposa morta; ele é preso e condenado, sofrendo uma metamorfose física e psicológica que restituirá em seu lugar Pete (Balthazar Getty), bem mais jovem, e que longe da prisão se envolverá com Alice (Patricia Arquette de novo, agora loira), noiva de um gângster sanguinolento.

O que seria uma premissa comum de qualquer thriller irrelevante vai além com David Lynch construindo clichês para depois desmontá-los e acrescentando signos no decorrer de sua narrativa. Espectador e personagens geralmente são apresentados a imagens/figuras que não são o que aparentam e precisam descobrir o que está por trás delas. Próximo de ambos os protagonistas masculinos a acompanhá-los em suas intrigas uma figura esquisita e de identidade não revelada (que parece deter a maioria dos segredos que pairam em torno do filme), com um rosto que lembra o da Morte em O Sétimo Selo, e que também remete muito à figura de Mefisto no genial Filme Demência, a versão livre de Carlos Reichenbach sobre Fausto, o homem que vende a alma ao diabo e rejuvenesce (seria Fausto de Goethe uma das inspirações de Lynch para o seu filme/personagem?). Outra das chaves do filme possivelmente seja Dick Laurent (Robert Loggia), que no começo é mencionado como morto e mais adiante surge como o mafioso que divide Alice com Pete, o que sugere distensões temporais que explicam em parte a narrativa intrincada, com o que é mostrado depois da troca de identidade tendo de fato se passado antes (com a mesma cena final se ligando a de abertura).

Mas que não fiquemos obcecados com lógica e resoluções, nem em decifrar ou interpretar o filme por completo. Lynch simplesmente elimina as sequências que só existiriam para explicar a história, as junções narrativas que nos levariam pela mão para não nos perder dos acontecimentos, tornando Estrada Perdida muito além de uma história convencional e clara, mas sim perturbadoramente elíptica e não menos envolvente, “cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens” (Thierry Jousse, Cahiers Du Cinèma).

É o cinema como uma experiência de fluxos rítmicos e sensoriais quase musical, mas sempre fortemente imagético, pontuado com um espetacular uso da trilha sonora, desde David Bowie no começo e no fim, passando por “This magic moment” (Lou Reed) na cena em que Alice surge para Pete, “Insensatez” (Tom Jobim), e os temas compostos por Trent Reznor (colaborador dos filmes mais recentes de David Fincher). Lynch como brilhante orquestrador de imagens trabalha num terreno que adere ao artifício, estímulos sensoriais, aos jogos de ilusionismo, a provocação, sedução, o disfarce, com uma sofisticação visual (como esquecer da cena de amor na areia do deserto, com a luz dos faróis do automóvel sobre Alice e Pete?) que mistura gêneros diversos: suspense, terror, romance, narrativa policial, etc. Os personagens de Estrada Perdida (e da filmografia de Lynch em geral) transitam num universo que só pode existir na tela de cinema.

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3 comments on “Estrada Perdida (David Lynch, 1997)

  1. O mais rock’n’roll dos filmes de Lynch, também percebi um amadurecimento numa trama mais arriscada na cronologia e tácita que o habitual, mas o jeito é mesmo se deixar levar pela narrativa e ambiente quase perfeitos…
    Bela crítica Lazo, principalmente o último parágrafo!

  2. E quer dizer da cena, quando o personagem misterioso no meio da festa fala pra Fred (Bill PUllman), ligar pra ele mesmo do outro lado da linha, aquela cena é inesquecível e aterrorizante também, parabéns pela crítica, muito elucidativa do desde já então um dos grandes filmes do cinema!!!!

  3. Heitor Romero on said:

    Gostei muito da análise. Considero A Estrada Perdida o início de um trilogia (talvez não intencional) de Lynch a respeito de Hollywood e seu mundo de sonhos e ilusões, formada também por Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos. Meu preferido desses é Cidade, mas A Estrada Perdida não fica muito atrás, um grande filme.

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