Por Daniel Dalpizzolo
“Quando ouço a sua música me dá vontade de ser livre. Ser livre pra criar”.
Desvincular o diálogo travado pelos amigos à beira-mar do procedimento de realização de Os Monstros é uma tarefa improvável. Embora sejam personagens fictícios, João, Pedro e Joaquim, interpretados por três dos quatro realizadores que assinam o filme, fortalecem ali, mais que laços de amizade, uma necessidade de vínculo artístico e de expressão que diz muito sobre o próprio filme e sua existência. Não por nada a sequência ocupa exatamente o centro da narrativa: se no plano inicial vemos João tocando um instrumento de sopro ruidoso e desafinado praticamente engolido pela escuridão solitária da noite que emoldura seu corpo, ao final vemos esta mesma linha sonora conquistar um sentido ao lado da guitarra não menos ruidosa de Eugênio, o quarto amigo/realizador, em uma gigantesca jam session registrada pelos equipamentos de som de Pedro e Joaquim – e, é claro, pela câmera, que legitima nosso olhar como parte integrante da ação e passeia por entre eles inquieta.
A arte como escape das desilusões da vida, a força das amizades para superar problemas e a inaceitação social não são temas inéditos, mas o que há de mais interessante em Os Monstros é como estas ideias básicas desenvolvidas durante a primeira parte (em situações corriqueiras como perda de emprego e fim de relacionamento) se conectam para dar a si mesmas e ao filme um sentido intimista e bastante particular – sem deixarem por isso de ser universais, mas se valendo mais do que representam aos quatro personagens-realizadores do que o que devem representar ao público. A jam session final, que se encerra com os quatro completamente exauridos e ofegantes, é uma ação que sintetiza a existência do filme, em que mais do que estes princípios de fuga/força o que se vê é uma necessidade de expressão vigorosa, um expurgo vital através da arte de um grito travado ao fundo da garganta, implorando pra sair.
Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, os ‘inventores’ do filme, como se auto-denominam nos créditos de encerramento, assumem através destas opções um risco que deixa o filme constantemente sobre a corda bamba. Apesar desta consciência de necessidade de expressão fortalecer uma visão geral da obra, em tela o cinema do quarteto cearense vai de momentos bastante envolventes, como a conversa na praia e a festa que frequentam depois (que celebra um olhar interessante dos autores aos seus próprios personagens, homens adultos que têm de lidar com questões quase adolescentes, como admitir a entrega sentimental a uma mulher), a planos e cenas bem menos atraentes, como as andanças pela rua com a câmera balançando vertiginosamente em frente aos corpos e a sequência do espetáculo desajustado no bar. Em alguns momentos o clima de improviso soa mais receptível como teorizador das ideias deste cinema do que efetivamente uma opção funcional para colocá-las em prática, o que torna a experiência um pouco desigual.
Os Monstros representa uma nova geração do cinema brasileiro, que aos poucos conquista espaço em festivais de cinema e até mesmo no circuito (o primeiro filme do quarteto, Estrada Para Ythaca, teve distribuição a nível nacional), mesmo que em esmagadora minoria em relação à produção mais genérica. E se por um lado vê-se nesta renovação um interessante sopro de novidade a um cinema hoje em dia raras vezes capaz de criar alternativas a si mesmo, também parece ainda não ter encontrado um porta-voz forte o suficiente para que ela seja consolidada no Brasil. Filmes como Estrada Para Ythaca e Os Monstros mostram um caminho, além de algumas tendências estético-narrativas (e como todas as tendências, esta tem seus prós e contras). Mas se o resultado em geral soa ainda um pouco imaturo, o que de melhor pode-se extrair da experiência é que, neste cinema, o desejo de expressão sobressai-se às fórmulas e até mesmo às tendências que abraçam. Os Monstros, mesmo com seu desequilíbrio, é apreciável enquanto manifesto esperançoso por um cinema brasileiro mais preocupado com sua legitimidade de criação do que com cifras.
Taí, bom texto! No que o filme tem de melhor e de frágil (termo que é quase uma piada interna do “novíssimo”), você foi bastante preciso. Não saberia dizer qual é o melhor representante deste cinema atual…talvez o filme da Marilia Rocha, “A Falta Que Me Faz”, talvez o filme do Sérgio Borges, “O Céu Sobre os Ombros”, mas ainda tendo, todos eles, problemas pontuais.
O melhor mesmo da leva da nova geração, mais que não necessariamente pode ser classificada como parte do “novíssimo” (quem pode, afinal?), é “Trabalhar Cansa”, de Marco Dutra e Juliana Rojas. Este, pra mim, está em outro patamar!