A Senhora de Todos (Max Ophüls, 1934)

Por Vlademir Lazo

Max Ophüls foi por excelência um diretor de carreira multinacional. Cidadão do mundo, de filmografia errática e em constante deslocamento, impressiona que tenha mantido ao longo de sua obra notável coesão e qualidade. Ainda que seja mais lembrado por sua fase na América no final dos anos 40, e por seu retorno à França na década seguinte, o diretor franco-alemão (parece-nos mais justo defini-lo assim) já mandava muito bem em seus primeiros filmes rodados na Europa no começo dos anos 30. Chama a atenção ao ver alguns dos trabalhos realizados desse período descobrir que Ophüls também era um realizador de comédias, entre as quais a divertida Lachende Erben ou a clássica La tendre ennemie. Entre esses dois títulos, porém, já provaria ser mestre absoluto no melodrama, com a obra-prima Liebelei e este A Senhora de Todos, filmado na Itália (melhor filme produzido por estas bandas antes do advento do neo-realismo?), após o diretor (judeu de nascimento) se retirar do seu país de origem com a ascensão do nazismo na Alemanha.

É um tanto difícil (para não dizer impossível) não pensar em Lola Montès diante de A Senhora de Todos. Este é um dos seus melhores trabalhos de juventude, o outro o ápice de sua maturidade artística. Não seria justo chamar Senhora de esboço para Lola Montès, mas sem dúvida o último título assinado pelo cineasta retoma elementos que já se encontram no filme de 1934: a mulher passando de mão em mão entre pretendentes e namorados, levando uns à ruína (moral e econômica), e perdendo reputação à medida que cresce em lenda e popularidade. As próprias estruturas de ambos os filmes procedem do recurso de voltar ao tempo para contar por flashbacks as trajetórias de suas respectivas heroínas: em Lola, reduzida à atração no picadeiro de um circo em que sua história será desfilada; em Senhora, à beira da morte numa mesa de cirurgia, após uma tentativa de suicídio, quando como num sonho vertiginoso repassa em sua mente amores frustrados (e instantes significativos de sua existência), desde o professor que abandona seu posto na escola que Gaby frequenta e da qual ela é expulsa quando adolescente, e os primeiros bailes e cigarros que experimenta em companhia masculina.

Trata-se de um dos tantos perfis femininos traçados pela câmera de Ophüls ao longo de sua filmografia, quase sempre em torno de “um monstro sanguinário com olhos de anjo” (como afirma o mestre de cerimônias interpretado por Peter Ustinov acerca da personagem de Lola), definição esta que se pode aplicar a muitas das mulheres que povoam o universo de Ophüls. Em A Senhora de Todos, a estrela de cinema Gaby Doriot (Isa Miranda) é até bem-comportada se comparada a Lola Montès, caricaturizada e reduzida à condição de puta emblemática de um período e continente (o europeu). Entre a verdade e a lenda, imprime-se a lenda (é o conceito que norteia a obra de John Ford em outro contexto especifico), mas tanto num quanto noutro filme se torna evidente que uma das intenções de Ophüls é nos mostrar o muito de publicidade que existe por trás de cada uma de ambas as lendas, das pechas pelas quais as duas personagens-títulos de seus respectivos filmes são vistas. Elas que são vendidas e suas existências expostas dessa maneira, distorcendo-se os acontecimentos para que se possa adequá-los para que outros lucrem com ambas: se Gaby Doriot se torna “A Mulher de Todos” é porque se sacrifica em prol da fantasia que alimentam em torno de si e que ela ajudou a construir, passando então a ser designada dessa maneira nos programas de rádio que recontam (e refazem) pormenores de sua vida, na canção que lhe é dedicada, no volume publicado com suas memórias, no próprio cinema. O mundo do espetáculo como palco de uma grande farsa, de verdades e mentiras, sonhos e ilusões ao longo dos oitenta e cinco minutos de projeção do filme.

No primeiro longa de Max Ophüls, Die verliebte Firma, dirigido três anos antes, o cineasta já escancara essa obsessão por figuras femininas numa história passada dentro do próprio meio cinematográfico, quando todos da equipe técnica das filmagens de uma opereta estão mais interessados em seduzir sexualmente a jovem estreante — que prometem transformar em estrela — do que realmente propensos em ajudá-la. De mulher livre Gaby se torna objeto de fetiche e refém encarcerada pelas grades construídas pelo mito alimentado em torno dela, convertendo-se em vítima e ao mesmo tempo algoz das relações com seus pretendentes e interesses românticos ao longo do filme. A principio, sua presença aparentemente frágil remete à pureza e inocência de Joan Fontaine em Carta de uma Desconhecida, podendo-se dizer que Gaby Doriot é como se, num exercício de imaginação, a heroína de Carta de uma Desconhecida ocupasse o corpo e estivesse no mundo de Lola Montès, antecipando ambos os filmes.

Impossível falar nos grandes filmes de Ophüls sem se referir aos seus travelings e movimentos de câmera sofisticados ao extremo, o que é quase um lugar-comum absolutamente necessário sempre que se discorre acerca do cineasta. Da luz ao reenquadramento, A Senhora de Todos já contém muito dessas experimentações, desde as suas primeiras sequências, o que inclui um movimento que acompanha a valsa do casal na passagem do salão à biblioteca. Ou as sombras enlouquecedoras na parede da esposa de cadeira de rodas se dirigindo pelo corredor claustrofóbico até a escada depois de chamar pelo marido que se consome de desejo por Gaby. A esta, ao final só restarão os filmes e cartazes espalhados por todos os lados.

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