Rio do cão

Por João Pedro Faro

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O patrão anuncia: “Lá em cima, o corcovado, com o Cristo de braços abertos. A empregada matou minha mulher a facadas”. Seu braço morto está caído, pisoteado pela empregada assassina, num samba sobre o corpo. Em Cuidado, Madame (1970), primeiro filme da Belair, o Rio de Janeiro é assim, visto do chão. Sucede, após essa apresentação, o desfile mórbido e celebratório das domésticas livres pelas ruas da cidade, arranjando folga pelas vias do homicídio avacalhador.

Estamos em Copacabana, coração de um ideal (já antigo) de Brasil filmado. A mesma Copacabana que recebeu Pato Donald em sua viagem para o Rio, a mesma Copacabana que foi palco de todo um sonho estadonovista por uma indústria de cinema para chamar de sua. A Copacabana das chanchadas, o material arqueológico escavado e regurgitado no cinema da produtora Belair.  E o que seria a Belair, se não a concretização de um sonho de pequena indústria? Uma continuação da Atlântida Cinematográfica feita de dinheiro retroalimentado, injetado em filmes excruciantemente cariocas.

Nisso, Cuidado Madame serve como atestado de princípios do uso do espaço público. Habita um cartão postal, percorrendo a Vieira Souto para chegar na praia, mas paga o preço necessário para isso. E qual seria o preço? Sem dúvidas, a vida dos patrões. Maria Gladys esfaqueia as patroas para fazer Carnaval em dia de serviço. Os limites que lhe são impostos, a barreira entre a cozinha e a sala, naqueles enormes apartamentos de beira-mar que poluem e embarreiram a praia de toda a cidade do Rio, são destruídos por uma nova gestão de trabalho. Esta gestão – a das tripas para fora – permite que o cadáver das patroas sirva de ponte para a livre circulação entre os espaços que habita.

Se Copacabana Mon Amour (1970) viria a convulsionar o limite físico entre o morro e a calçada, o que ocorre em Cuidado Madame é um processo anterior de articulação entre a possibilidade de ocupar as ruas e a necessidade de ocupar os apartamentos. Maria Gladys, após suas matanças, leva Helena Ignez para as casas das patroas, a fim de puxar um baseado no sofá caro, roubar peças de roupas que lhe interessam e gozar dos corpos das madames que deixou ensanguentados à beira das piscinas. Logo depois, descem de volta para a rua.

A câmera, guiada por Bressane, balança ao andar de seus passos, atrás de Gladys e Ignez. Bressane não filma apenas na rua, como também filma a rua, uma adição que existe por tratar o maquinário fílmico como instrumento de registro visível. Ou seja, a câmera nunca desaparece, nunca finge não existir. Ao filmar suas personagens em contato direto com os fluxos vivos de uma Copacabana movimentada, esbarrando em pedestres, sendo observada por curiosos que chegam a olhar diretamente para a lente da câmera, ele aceita a rejeição daquele espaço em ser encenado e faz disso o processo da encenação.

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A rua da cidade, imparável, não deseja ter nenhum de seus processos diários interrompidos pela simples vontade de um cineasta em filmar na locação. Portanto, a cidade rejeita naturalmente a presença de um maquinário fílmico que tente fingir ser invisível, que peça para os pedestres não passarem em frente à câmera, que feche uma rua para evitar barulho dos carros. Se o cineasta ocupa a rua para filmá-la, que pelo menos permita que ela reaja de volta à sua presença. É exatamente isso que acontece nas grandes sequências de Cuidado Madame, em que não só os passantes interagem com a presença de Bressane, Ignez e Gladys, como também deixam com que as atrizes sejam formalmente integradas ao espaço urbano que ocupam. Praticamente nenhuma linha dos diálogos entre as duas na rua é minimamente audível, sendo esmagados pela barulheira de carros, pessoas e comércios. Copacabana deixa de ser um palco idílico, um estúdio sonhado que reúne uma alma carioca, para se tornar um espaço de encenações do erro, do tropeço, das milhões de possibilidades oferecidas pela filmagem sísmica declaradamente suspensa de grandes intromissões.

A jornada da câmera, a passos, percorre do terreno baldio ao terraço do apartamento de luxo. Os extremos existem em semelhança, pois as transições entre eles estão possibilitadas, já que os donos das terras estão mortos. Certamente, podemos dizer que Cuidado Madame estabiliza os intensos fluxos de um bairro-turismo planificando suas construções (e suas especulações) em um mesmo horizonte de uma ocupação iconoclasta. Já que as domésticas homicidas têm acesso a toda a extensão de um território de limitações fortificadas, elas podem caminhar sobre esse chão em tom de despreocupação e de avacalho, sendo os limites anteriores uma risível tentativa atual de impedir sua passagem pelo espaço. Como símbolo maior de uma fortificação ridícula, está o Copacabana Palace. Esse castelo imperial que ocupa todo um quarteirão, essa força de retomada do Brasil Colônia em um forte branco que reluz o sol de meio-dia, não é nem vislumbrado pela dupla de protagonistas, que deixam apenas um rastro de sangue ao lado de suas extensões.

Em outra recorrência que aponta para uma livre ocupação urbana, estão as vazias viaturas policiais, enquadradas mais de uma vez por Bressane. Acumuladas e ocas, como carcaças de animais em bando, as viaturas surgem nas imagens de Cuidado Madame como uma representação de uma ameaça inexistente às forças caminhantes das domésticas assassinas. Não há qualquer momento em que seu triunfo de circulação despreocupada seja regulado por uma força advinda da manutenção das propriedades privadas, pois não há qualquer interesse de Bressane em interromper sua encenação que institui o enquadramento como uma liberta entidade de circulação, que processa os planos no andar ora aproximado, ora distanciado das duas atrizes.

E onde está, então, o resto da cidade do Rio? Não existe. Copacabana está em Cuidado Madame para concentrar todo o ícone de uma cidade. Está refletida nas janelas dos prédios de metro quadrado mais caro, enquadrada pelos limites das bordas desses vidros que refletem replicações de si mesmos. Copacabana existe como centro de representação do Rio de Janeiro da mesma forma que Gladys existe como a personagem de chanchada que deve representar toda uma classe, todo um núcleo de existência popular; choque de ícones totalizantes em um processo de carnificina libertadora.

Uma empregada esfaqueia a patroa e vai à praia, rompendo com qualquer impossibilidade de ação. Seria esse, enfim, o emprego perfeito? A matança é um trabalho duro, que requer suor e força braçal, mas que possibilita um Carnaval permanente pelas ruas de uma cidade maravilhosa.

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