Entrevista: Affonso Uchôa

Por João Pedro Faro

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Affonso Uchôa

O cineasta mineiro Affonso Uchôa teve seu nome nos créditos de três produções selecionadas na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O média metragem Sete Anos em Maio (2019), em que assina como diretor e roteirista, e os longas Sequizágua (2020, Maurício Rezende) e Mascarados (2020, Henrique e Marcela Borela) como roteirista e montador, respectivamente. A entrevista foi feita após a exibição de Sete Anos em Maio. A breve conversa trouxe à tona perspectivas do atual cenário de um cinema nacional em que os filmes citados anteriormente se encaixam e se modelam, seus limites e suas expansões.

O Sete Anos em Maio, assim como outros filmes que você participa e que estão na Mostra, lidam de alguma forma com o gênero da ficção documental. Quais são os limites que você percebe, em concepção, desse tipo de cinema no Brasil?

Ainda está para a gente entender melhor, no cinema brasileiro, essas nuances entre ficção e documental, existem muitas formas de assimilar isso. Como exemplos, o Sequizágua e o Sete Anos em Maio carregam muita diferença entre as relações e as formas desse trânsito. É importante dar uma certa contextualização também desse gênero como um caminho do cinema contemporâneo. O que mais me interessa nisso, o que me estimula e o que, de certa forma, justificou meu cinema a trabalhar com isso nos meus filmes é uma potência de escrita e de criação cinematográfica.

De ficção, então?

Sim, também. Porque o trabalho com a realidade é uma energização desse fator ficcional, é uma percepção dessa realidade. Não no sentido tradicional de pesquisa e estudo de campo, não há instrumentalidade. O que acontece no cinema contemporâneo, dos anos 2000 pra cá, é que a relação entre quem filma e quem é filmado, a presença física na imagem em si, faz com que a presença da realidade na imagem seja mais ativa. Faz com que a realidade funcione menos um depositório de imagens, mas que seja parte da dialética do processo fílmico e das suas formas. É o trabalho com essa presença que difere o Pedro Costa (Cavalo Dinheiro, Vitalina Varela) do Apichatpong (Tio Boonmee, Mal dos Trópicos), como exemplos. Mas de alguma maneira ainda há algo que une dois cineastas como esses, um “estado do tempo” que perpassa o cinema contemporâneo como um novo estatuto da realidade. O estado que energiza e alimenta o ficcional. Nos meus trabalhos, prefiro pensar que a fatura final é sempre ficcional mesmo que o ponto de partida seja, superficialmente, documental. O que interessa é pensar como o cinema vai operar no contato com a realidade.Sobre os limites disso atualmente, como todo trabalho estético, a gente vive um esgotamento dessas formas. No sentido de que o cinema e a realidade demandam outras coisas que não apenas essa dicotomia conhecida. Nossa resposta, como cineasta e autores, deve ser pensar no que deve existir de novo. A ficção documental, especialmente a brasileira, está partindo de uma espécie de “academicismo do não-academicismo”. Um protótipo. O ato de jogar-se na realidade parte de inseguranças, e quando a insegurança parece muito disfarçada, como é o caso desses protótipos, o meio começa a ficar meio problemático. Há uma gama muito gigantesca de criação de imagens no cinema. Quando isso começa a ficar muito hegemônico, nós começamos a sentir falta de outras formulações.

Até por essa quantidade de imagens que temos hoje, o caminho para esse cinema, que parte de uma realidade mais direta para procurar a ficção, está próximo de uma encenação que poderíamos chamar de mais “clássica”? Como o próprio Pedro Costa, que nega o documental e se espelha em concepções por vezes clássicas de encenação. Existe um ciclo escondido nisso?

Não sei se é tão geral assim. Acho que existem formas muito diferentes de pensar nisso. O cinema do Teddy Williams (O Auge do Humano), por exemplo, já aponta outro tipo de fluxo de imagem e de encadeamento com o tempo. O que está no clássico é a forma do cinema de encontrar-se com o mundo. Não é nada surpreendente ver o Costa tendo esse tipo de posicionamento. O cinema clássico é uma escola, uma antecâmara do imaginário cinematográfico que acaba retornando em qualquer filme. Mas não diria que é algo geral quando se trata desse certo “ciclo”. Existem trabalhos indo nessa direção, mas acho que o cinema hoje é muito espalhado, muito multifacetado. E ainda existe esse cinema clássico, o clássico de ficção, ele sobrevive em poder e força enquanto arte que resiste ao tempo.

Pensando no Sete Anos em Maio, um filme de poucos planos, que conta uma história através de relato direto por boa parte de sua duração, até uma cena final que é totalmente encenada, existe um interesse da narrativa feita pelo mínimo que caminha para uma encenação mais tradicional? Isso tudo feito com o recursos igualmente mínimos?

O que penso, que dá para fazer conexão com um pensamento mais amplo, é que a economia de meios em linguagem e produção tem dois lados, o econômico e o artístico. O balanço disso é inerente ao cinema, que é uma arte industrial feita de muitos instrumentos e de muita equiparação. No caso do Sete Anos em Maio, é um filme pequeno e barato que só foi feito dessa forma porque o que é dito pelo filme pode ser feito de forma precisa, econômica.

Sete Anos em Maio
Sete Anos em Maio

Isso também parte de uma noção contemporânea imediatista? No sentido de que é feito a partir do possível, da realidade sendo o que está próximo do que pode ser realizado e que tem uma necessidade de que elas sejam realizadas

No nível do anseio, sim. O anseio de que aquelas imagens existam e sejam vistas. Não sei se imediato, mas urgente. E isso também tem a ver com esquema de produção. É possível fazer um filme como Sete Anos sem um circo de parafernálias cinematográficas. Para que aconteça, para que seja concretizado, você não precisa de um arsenal tão completo, não precisa de toda uma indústria. Acho que são duas recusas que acontecem aí, a recusa ao tradicional do cinema industrial, contra o regime de produção, e a recusa a relação com as próprias necessidades tradicionais do cinema, e a favor de um certo artesanato.

E dá para enxergar esses recursos mais diretos como uma herança dada ao ambiente que você filma? No caso, a uma periferia que está em tela, essa experiência com o artesanato, existe uma possibilidade aí?

Eu não lido com expectativas. Também não lido com a ideia de que a minha produção possa gerar outras coisas. O que fica, para mim, é que existe potencial e desejo para a instrumentalização cinematográfica, enquanto trabalho,das pessoas da periferia para que elas se equipassem para a própria produção fílmica. E saber que essas pessoas iriam para caminhos muito diferentes sem sua produção, como qualquer grupo de pessoas, vai existir a diferença. A realização parte de uma questão material mesmo, de possibilidade. Acho que meus filmes abrem algumas janelas, mostra que é fazer cinema é real, de alguma forma. Mas ainda é pouco. Para abrir como possibilidade real de uma periferia fazer seus filmes, outros filmes, o trabalho deve ser governamental. E o capital não vai trazer isso, não é um mercado que vai atrás dessa produção. São necessidades mais fortes, necessidades de atuação do poder público. O que vejo a partir de quem trabalha nos filmes é um orgulho da própria participação, eles são vistos em um lugar e podem se perceber como atores ou roteiristas, e estão presentes nisso. Eu percebo esse orgulho pelo trabalho feito e um orgulho por trabalhar. Até porque meus filmes são trabalhos em que eles não vão apenas realizar tarefas, vão vivenciar o processo fílmico e criar dentro daquilo. Sem querer tirar qualquer ilusão de que isso torne eles absolutamente ativos, não é assim, existe uma diferença de base entre meu trabalho e o deles porque continuo sendo o diretor dos filmes. Mas é possível uma criação, uma intervenção. E há gosto nesse lugar e nesse trabalho. É a minha percepção.

Não assistir a esse tipo de trabalho de quem é filmado em periferias, dentro do cinema nacional, foi o que, também, impulsionava você a querer assistir algo que ainda não existia?

Acho que os filmes que eu fiz partem de meu próprio anseio em ver uma periferia diferente. Não queria ver aqueles corpos moldados aos modelos de ficção preconcebidos, um molde conforme feito por mãos instrumentais. O trabalho poderia estar sendo tecnicamente competente, mas sem vida, um desperdícios de riquezas. Ver esse tipo de coisa, para mim, era um achatamento de experiências. Não vejo porque alguém iria querer fazer filmes que corroborassem com as opiniões que já existiam sobre determinado lugar, como o ambiente periférico. Faltava jornada por lugares ainda desconhecidos pelo cinema, uma jornada em descobrir outras potencialidades. E meus filmes respondiam, para mim, a essa falta.

E o que ainda falta ver no cinema brasileiro que, hoje, você ainda não assiste? O que você gostaria de ver?

Eu sinto que o cinema brasileiro, atualmente, está num caminho de adequação ao mercado de arte internacional. A nossa tradição era de um experimentalismo radical, e acho que sinto falta de ver esse radicalismo. Nossa história é de cineastas que experimentaram suas linguagens até o final e, hoje, não vejo os filmes que estamos fazendo muito ligados a isso. Acho que dá para romper esse deslumbre com a inserção internacional, um cinema menos hegemônico que não queira estar estreando em Cannes. Cannes já está moldada, eles sabem o que querem e o que representam, sabem o tipo de cinema que querem. Vejo muitos cineastas fazendo uns filmes que mais parecem uma tentativa de receber carimbo para festivais como esse, para a aceitação desses meios. Falta diversidade nisso. Esse cinema, de projeção, tem que ser menos majoritário. Falta o múltiplo, que venha da origem marginal e experimental do nosso cinema, e que é o nosso cinema moderno que nos deu tanta coisa.

Estaria o cinema brasileiro condenado a discutir para sempre “o problema do cinema brasileiro”?

Sim, porque o cinema brasileiro é um problema por si só. Assim como qualquer manifestação cultural no Brasil, queé um país feito para recusar o seu próprio cinema e sua própria arte em geral. A manifestação cultural é tratada como se fosse um desvio de conduta, então continuar fazendo cinema é encarado como um problema. Ainda por cima, o que é feito é colocado de lado, e isso também é um problema. E o cinema brasileiro que é feito é feito apesar disso, mesmo sendo tratado como um problema e gerando seus próprios problemas. É uma não-subserviência. Nossa questão é perceber como a insubmissão ao poder vigente pode ser mais espalhado, algo maior, que alcance mais espaços.

Então ser um problema seria também o nosso mote principal? Nosso ponto de partida?

Acho que sim… Talvez não um ponto de partida, mas uma força. A força do cinema brasileiro é ser um problema para o país, é ser algo que o Brasil não quer. E o poder está aí para dizer que o cinema brasileiro não existe, não aconteceu, não cumpriu um papel. Ou que aconteceu, mas foi uma perda de tempo. Essa subserviência a um Brasil atrasado, extrativista, arcaico, que está na cara de quem comanda o país, é a resistência do país que rejeita seu próprio cinema. Então a força do cinema brasileiro é desagradar qualquer poder, é ser um problema.

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