Duas noites brancas

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Por Gabriel Papaléo

“Mas pra quê preciso de relações? Eu já conheço toda Petersburgo sem isso; aí está por que me parecia que todos me abandonavam quando toda Petersburgo se levantou e partiu de repente para o campo.”

Dostoiévski, Noites Brancas.

Das muitas imagens e sensações de uma cidade em expansão, das mais marcantes em Noites Brancas são sobre o fluxo migratório de uma cidade e do que isso representa na memória de um habitante jovem dela – e especialmente como um encontro pode despertar uma nova relação com esse lugar. O contexto da São Petersburgo descrito por Dostoiévski no seu breve livro é o de transição dos tempos, das pessoas voltando ao campo para o trabalho à época de 1848, ano de lançamento do livro, ainda no início da carreira do autor. A cidade descrita pelo russo é dos solitários, dos jovens que ficaram para trás, e em Quatro Noites de um Sonhador e Millennium Mambo, Robert Bresson e Hou Hsiao-Hsien atualizam essa sensação para cidades sob diferentes sombras – e cada qual reagindo a seus respectivos tempos.

Noite silenciosa em Paris

“A nossa imagem, como lembrança desse lugar.”

Marku Ribas, na música “Porto Seguro”

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Cineasta que adaptou obras de Dostoiévski em duas outras oportunidades, de forma livre em O Batedor de Carteiras (1959) e de forma direta em Uma Mulher Delicada (1969), Bresson inicia sua investigação do flanar e das intenções incendiárias da juventude aqui em Quatro Noites de um Sonhador. Mas se o cineasta viria a radicalizar no elogio ao arrojo político dos jovens em O Diabo, Provavelmente (1977), aqui, seis anos antes, o seu elogio é ao romantismo de quem entende que vive no presente à sua disposição.

E a Paris de Quatro Noites de um Sonhador é uma cidade para ser tocada pelas mãos, nos corrimãos, maçanetas e bondes, e para ser vivida pelos abraços apaixonados que persistem aos olhares perdidos corriqueiros do trânsito. Explora essas sensações na figura do sonhador do título, que percebe os amores que habitam a cidade pelas trocas fugidias nas ruas, e vê a mulher com quem passou as noites sumir no mesmo balaio das canções urbanas, dos transeuntes, que os uniram, no mesmo fluxo de pessoas a caminhar. Essas são partes fundamentais para Bresson conjurar momentos mágicos de vivência no ambiente propício aos acasos, como nos interlúdios musicais que atravessam as águas em português ou em inglês, e criam essa Paris suspensa pela fantasia mas sempre tão cotidiana e verdadeira, disposta às andanças, não-turística.

É um olhar atento de planos que sempre estão concentrados na ação de deixar Paris viver seus movimentos paralelos, as pessoas entrando no fundo do quadro com tanta frequência, a noite iluminada pelos anos 70 e pelos tons azulados do eastmancolor. A descoberta de Marthe com seu próprio corpo embalada pela mesma voz que mais tarde virá a marcar uma memória de um barco a passar cantando, que sinaliza a vontade do amor que virá em seguida apenas pelas sugestões de toques, pela batida delicada na parede, as luzes que se apagam, e a câmera precisa e focada de Bresson, cineasta mudo das ações e sobretudo romântico; o caminhar pelas ruas e a aspiração de dias de suspensão, dois dos maiores registros que senti com o Noites Brancas.

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Se o campo da Rússia era narrado como o distante retrato do fluxo migratório de São Petersburgo, aqui na França o campo são flores amarelas fortes, seus tons idílicos de memória enquanto Jacques anda pela cidade, como a tradição bucólica dos quadros de Renoir e de quando Van Gogh se dedicava à natureza. Bresson ilustra e sugere através dessa visão mais individualizada, do diálogo com as artes plásticas, mais francesa enfim, uma resposta moderna de cotidiano parisiense dos encontros que passam, mantendo toda a solidão dos anônimos da metrópole sob outro contexto social, e mesmo assim deixando aos amores que acontecem e passam toda a atenção que eles merecem e a eles é concedida – por Dostoievski e as palavras, por Bresson e os gestos.

O protagonista Jacques começa perdido na solidão de sua história. Está feliz na primeira noite porque “hoje foi ao campo”, se distrair dos ruídos urbanos, dos amores perdidos em uma porta de bondinho fechada, do movimento que não cessa. É nesse fluxo anterior ao encontro que Bresson estuda o espaço e organiza os rituais do flanar, do passeio diurno e noturno, do que Jacques enxerga enquanto olhar atento e curioso para o urbano. É uma visão idealizada também da cidade, sob as tintas melancólicas que um idioma como o francês traz, e essa ligação aparece sobretudo na primeira aproximação de amor entre Marthe e seu amor platônico, feita através dos gestos, dos sons e das sombras. O toque no corrimão, como o toque nas portas, como o toque na pele, experimentando o que se pode na cidade ao alcance – inclusive o que não conhecemos.

No encontro breve no confinamento do apartamento, nas possibilidades da terra estrangeira, nas fugas imaginadas de uma Paris infértil àquele olhar entediado de Marthe, essa idealização se desenha na figura do inquilino, do fantasma do passado que assombra o relato contado para Jacques. E quando testemunhamos essa aproximação entre memória e presente se desenhando, Bresson retrata o que o amor tem de palpável, nos toques e gestos, nas andanças e abraços, em compartilhar momentos na noite estrelada e urbana que se mantém em movimento sempre. O amor de Marthe é sobretudo de intimidade e idealização, enquanto o do Jacques por Marthe é do acaso e suas circunstâncias iluminadas.

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Num retrato tão sublime e significativo do passado, o que poderia ser tomado pela névoa ilusória da nostalgia vira uma base emocional para o presente nas mãos e olhos de Bresson, no cuidado sobre com o cotidiano de ocupações através dos gestos. A história de Jacques e Marthe parece tão mais viva e palpável talvez pela forma que esses dois andam em direto diálogo com o coletivo, com a cidade que pulsa; no passado, os encontros de Marthe com o inquilino prometido são sugestivos, sempre à beira das dissonâncias, fugidios e quase místicos. A rica cena musical que compõe a tapeçaria cultural da noite na Paris do presente do filme é muito responsável por essa concretude do presente, que nivela a suposta banalidade das buzinas, dos carros passando, dos transeuntes ao redor do casal, com a magia impressionista dessas músicas que suspendem o tempo e parecem devolver um histórico visível da cidade diante dos olhos.

Na bela cena de Marthe no quarto examinando seu corpo no espelho, ela liga o rádio e ouve “Musseke”, música de Marku Ribas. Essa trilha embala os movimentos graciosos de Isabelle Weingarten, atriz magnânima da qual Bresson sabe guardar um close, e através desses gestos há uma nova curiosidade pela sexualidade, desencadeando ainda no pelo encontro de sombras com o inquilino, feito através de ruídos e sugestões com uma parede de distância entre eles. Mais tarde, de volta ao presente da terceira noite, na cena em que o grupo Batuke aparece tocando e cantando no bateau mouche sob a Pont Neuf, Jacques e Marthe param para ouvir a música que sai dali. É quando a voz agora familiar de Marku Ribas reaparece para cantar “Sou só, na estrada sigo só, levando a espera que era ela/E o meu coração que não traz segredos/Sigo sem medo rumo ao sul.”, trazendo sob a voz brasileira e a língua portuguesa um sentimento que atravessa o olhar dos dois, e talvez inconscientemente manifeste uma aproximação misteriosa entre passado e presente, na mesma voz que desnudou Marthe em seu quarto no dia em que redescobriu os detalhes de seu corpo ser agora a voz que ecoa pela cidade numa “coincidência” que só o trânsito poderia criar. A melancolia e amor do hemisfério sul atravessou a noite francesa como o ruído distante da saudade.

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É por conta desse tipo de sutileza que testemunharam que Marthe lembra a Jacques que agora estão ligados para a vida toda, porque compartilharam um momento de reconhecimento de um no outro por conta da noite da cidade. Ela vive na cidade grande e no meio das multidões, e seu rosto está gravado nas memórias, e Jacques depois percebe que até o nome dela existe nos barcos e nas vitrines de loja que refletem os fantasmas que ali habitam. Como tal fantasma, se pensarmos que na cidade pouco de nós fica gravado e o que nos sobra são as reminiscências com lugares que por vezes nada tem a ver com seu intuito inicial, Marthe pertence à noite e ao acaso, e não abrirá mão de se perder na multidão para se reconectar com quem lhe prometeu o futuro. Jacques percebe que é num sopro que ela vai embora da mesma forma que surgiu, como o vento que Bresson já disse vinte e quatro anos antes que “sopra onde quer”, e o caos de uma rua cheia parece o único palco possível para essa despedida apaixonada.

É nesse encerramento de solidão, mas também de devoção a um dever emocional, que Jacques encontra a confissão final. O movimento anti-nostálgico e sobretudo atencioso às nuances melancólicas da vida que possibilitam um otimismo sonhador, como no livro, se manifesta na serenidade de Jacques em reconhecer que, apesar de ter sido a piada do destino, às andanças pode retornar, ao trabalho dos seus quadros e das paixões muitas pelas ruas, e que será eternamente grato pelos olhos de Marthe que o fizeram procurar novamente por Paris.

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Noite eletrônica em Taipei

“A cidade dos outros / bate à nossa porta.”

Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, “Cidade dos Outros”.

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Partiremos de uma suposição: se Bresson escolhe a distância entre a perspectiva de Jacques e Marthe, em Millennium Mambo é como se Hou Hsiao-Hsien focasse inteiramente no passado da protagonista feminina do livro, e imaginasse todas as turbulências que os amores dela causaram. E aqui o movimento migratório russo vira as lembranças de uma Taipei em transformação. Hou localiza com atenção uma suspensão histórica, um momento de transição sem perspectivas de conclusão no fim do século que chega, na música eletrônica abrindo as portas para o desconhecido cujas elipses são difusas justamente pela forma que registramos o amadurecimento sem certezas. Estamos sob a visão de Vicky, a protagonista, testemunhando sua história; na noite branca de Taipei os sonhadores são os espectadores silenciosos.

A rotina de Vicky, a personagem vivida por Shu Qi, já é iniciada num contexto de efervescência cultural jovem da música eletrônica como um sinal de fluxo ininterrupto dos tempos, das drogas que borram a percepção do tempo e ativam a nostalgia de sua passagem. É sob seu olhar que vemos os dilemas diante o pêndulo da sua entrega aos relacionamentos que a atravessam, e talvez a única vez que enxerguemos a protagonista em total plenitude é no estonteante primeiro plano do filme, quando ela anuncia em off onde estava emocionalmente essa mulher “há dez anos atrás, na virada do milênio”. Millennium Mambo já começa com a voz do futuro porque a percepção do tempo para Hou aqui demanda distância – no presente estão todos à flor da pele.

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Muito por isso é fundamental para Hou que o espaço esteja bem localizado; sua dinâmica de planos inteiros sem corte, com a câmera se movimentando dentro de um mesmo plano, à procura das ações, quase sempre à meia distância, deixa transcorrer na encenação o tempo presente do drama. Seja nas cenas de agitação das boates, seja nas interações domésticas entre Vicky e Hao-hao, o espaço existe como nos filmes silenciosos dos Lumière, revelados por um ponto de vista fixo, que ilustre as nuances entre primeiro plano e fundo do quadro, mas que comporte todo o movimento. O extracampo é intuitivo e Hou prefere o sugerir com o mistério de quem escolhe a posição do olhar e se agarra nela. É através dos acumulados desses espaços, que se repetem e também se comentam, que entenderemos as elipses e o tempo. Mas adentremos primeiro no espaço.

É como o espaço retratado por Kenji Mizoguchi, outro mestre em separar com cautela o que acontece em primeiro plano e o que acontece no fundo do quadro, nos seus filmes voltados às protagonistas femininas pagando o preço emocional da dureza institucionalizada dos homens. A câmera passeia por cômodos e pelos rostos dos personagens, mas sempre num fluxo calmo, no seu próprio tempo, como um observador atento que já sabe do destino daquelas pessoas. No caso de Vicky, pelo off reflexivo vindo do futuro, é como se o olhar fosse o da câmera, que procura nessas memórias o sentido totalizante daquelas experiências – cenas essas escolhidas a dedo para criar um retrato suficiente da personagem em poucos momento; é uma herança também da literatura, como o próprio Dostoiévski e o argentino Jorge Luís Borges – cujo prólogo de História Universal da Infâmia diz justamente sobre seu desejo de falar sob a “redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”¹.

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E quais são essas poucas cenas que definem Vicky, e essa transformação íntima de Taipei? O fluxo de dois romances que se interpelam, de duas cidades de épocas diferentes. A partir da liberdade da primeira cena, do fugidio que é o suficiente para ser gravado na jornada pessoal, o já citado pêndulo constante entre o relacionamento abusivo com Hao-Hao e o flerte com Jack – esse um homem mais velho, mais paternalista, mais seguro, uma promessa de solução na tradição, dos rituais, das câmeras de segurança, da calma, do silêncio, dos trens tão filmados por Ozu. O estrangeiro e a tradição taiwanesa sem respostas, a carência de perguntas do presente, e o acaso possibilitador como o que persiste.

A relação de Vicky e Hao-hao, por sua vez, é mediada pelo confinamento – e talvez aí seja a proposta estética mais arriscada do diretor: de organizar uma mudança quase romanesca de Taipei diante dos olhos de Shu Qi, mas quase exclusivamente filmando cenas internas, domésticas, onde as mudanças externas são mais intuídas que mostradas, como a batida da trilha de Lim Giong, que atravessa paredes, tempos, corações e corpos. Mal existe acaso na vida de casal de Vicky e Hao-hao, é a mesma trilha de destruição que não consegue ser evitada pela personagem que busca solitária por equilíbrio emocional diante do desarranjo irresponsável do parceiro. Quando existe o acaso é para propor a mudança, como todo acaso que se preze numa vida urbana, e é o suficiente para fazer Vicky largar seu namorado sem precisar recorrer a fuga imaginária e impossível ao passado que sua mãe e sua cidade natal no interior representam.

É um desejo evidente em Vicky, ainda que nada verbalizado, a vontade de presenciar a vida na cidade. Flui como um rio o corpo da personagem indo de uma festa em outra, seja em boates ou no seu próprio apartamento, os cigarros que se enfileiram, as bebidas que nunca saem da mão, os olhos cansados como numa ressaca constante – tudo isso para de alguma forma se sentir na cidade. É um detalhe bonito demais quando Hou filma a primeira ida de Vicky ao Japão e conhecemos brevemente a velha de Yubari, uma mulher de 80 anos que quer ficar viva mais vinte para ver a cidade se transformando. A sede de mudanças e de se manter testemunha do tempo não é sinal de juventude ou velhice, mas algo que se reimagina de geração em geração, de idade para idade.

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Quando surge a oportunidade de filmar uma imagem dessa mudança, Hou elege os rostos marcados pela neve de Vicky com o amigo no Japão. A neve que cai rapidamente os dissolverá, mas a necessidade de se gravar na cidade não passa pela razão, mas sim pelo gesto. E na estrutura da montagem, que intercala tempos com elipses às vezes desavisadas, desafiadoras, o tempo fragmentado é que exerce o acúmulo de sensações, acompanhado como o fluxo de uma reminiscência, como pequenos registros de uma realidade de mudança cujas permanências são de relações que ajudam a moldar a relação com os espaços que vimos ao longo de cem minutos que agem – da melhor forma possível – como anos a fio.

A fuga pertence ao futuro que não acessamos através da imagem; o intuímos pela voz de Vicky, por sua memória da década futura, propondo uma Taipei esgotada cuja batida uniforme da música eletrônica anestesia como as paisagens de segurança que estão pela janela. O que resta é um movimento não de nostalgia reverente e sacralizadora, mas um aceno com respeito ao passado pelo seu poder de formação; um filme de amadurecimento antes de um filme de amor.

E a imagem desse aceno não poderia ser outra que não a neve, que sobra no fim, a acabar no dia seguinte, mas ainda ali para ser aproveitada com quem lhe faz bem, para lembrar que a natureza está ali em harmonia e que o vento e os pássaros existem para além dos dilemas das pessoas. Ali na serenidade da viela solitária ocorre a noite branca final, de despedida do mágico encontro com alguém, dos cartazes antigos ficando nesse milênio que se esvai, da memória desse cinema rumo ao desconhecido como a neve a derreter com a chegada do Sol.

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Referências:

1 – Jorge Luís Borges, “Prólogo a primeira edição” em História Universal da Infâmia (1935), pag. 9

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