Por Felipe Leal
‘’Um grande sábio cria, imagina tanto ou mais do que um artista. O artista adivinha; fazer arte é prever. É por isso que Newton e Shakespeare, se não se excedem, se igualam. ‘’
Morreu o professor Antena. Morreu… assim mesmo: erguendo as mãos ao céu, em companhia de seu pupilo, prestes a levá-lo ao grande momento-êxtase da revelação pela qual tinha se isolado por semanas, cientista enlouquecido à beira do apocalipse mental, criando campainhas e técnicas de alcance. Morreu o sábio em meio ao rugido estridente de algo. Repentino como aqui está escrito, dir-se-ia mesmo que “sem motivo”. E pronto – estatelou-se no chão, as vísceras expostas, o último suspiro, o derradeiro lampejo das pupilas ao nosso alcance – e sobre este evento falaremos em breve. Antes, incitados nós pela intrigante Busca maiúscula, a que também se lançam seu ajudante e o amigo poeta, é preciso voltar ao estágio anterior ao primeiríssimo sim. E diz-se “sim” por falta de vocábulo mais apropriado: retrocedamos ao estágio pré-linguagem, pré-ordem Pteurosauria; ainda antes da primeira célula que se bipartiu e se quadripartiu e assim por diante. O momento anterior à primeira estrela, à possibilidade, à luz. Onde se iniciou, como se iniciou o… o quê? O que havia antes que as coisas existissem?, perguntou-se o professor. A questão está no presente, parte do corpo, elabora-se no intelecto, se assim supomos que as ideias surgem do cérebro, que, afinal, é uma imagem como qualquer outra do mundo. E se é uma imagem, assim como o são as estruturas lenhosas que chamamos de árvores e os minerais que chamamos de rochas, qual a imagem primeira?
Morreu o professor Antena e a medicina questionou-se sobre a ferida triangular no ventre que expôs suas entranhas; a polícia solucionou o caso sob a marreta da inquietude: foi estranha, a passagem, e os jornais assim o grafaram em negrito. Caso encerrado, não há o que se fazer. A única testemunha tampouco saberia explicá-lo. E iniciou-se a película com a ontogênese psicanalítica, neste caso, do não-reconhecimento primordial, a extensão lacaniana subvertida com o passar dos anos: o pupilo recorda da infância perturbadora, quando via o próprio reflexo no espelho e estremecia, apavorado com o mistério que é ele mesmo. Mas é ou era? O verbo vem a colocar a questão primordial. E, retroativa, também se encabeça a narrativa, com o típico “vou contar-lhes o que aconteceu…”. Sabe-se, pela titulação e pelo início em cauda que promove a diegese, do acontecido, mas aqui não se põe em questão o suspense também típico que aguardaria até o final para acompanhar a solução, e que torna esse próprio andamento a expectativa de uma simples descoberta que estaria dissolvida numa cena – aqui está, pronto, já sei como morreu, posso desligar o filme e dobrar a tela –: o que Noémia Delgado instaura é uma espécie de peripatética transcendentalista do artista (poeta, não menos) e do tutelado, em que, adicionada à mescla aqui igualitária entre os dois grandes convocados ao ofício da imaginação, materializa-se, espectral, a “presença” do “morto”.
Morreu o professor Antena, decerto, e o que o Cinema tem a ver com isto? Por relação direta, acusamo-lo: ele, por gênio, tem culpa no Cinema – culpa em que ele exista. O que é, fundamentalmente, a arte de que falamos? Ora, é exatamente o mesmo que o homem: uma reminiscência. Explico-me, porque a culpa maior está, ainda, no Tempo: filmar é escorregar em delícias na armadilha da ilusão de que capturamos o movimento. Para além das histórias, do dito e do mostrado, bem acima das encenações e sensações, fugidio mesmo ao que é programado e ao que escapa à interpretação e à incidência em quatro arestas, está um aparelho que simula algo que nunca se pode alcançar. E porque nunca podemos apalpar o instante-já, acredita-se que é preciso acreditar na farsa. “Só podemos imaginar aquilo que vimos e de que nos lembramos; se vimos, a fantasia se chama memória”, cita o professor, e está presa numa rede, indefesa como uma borboleta, a Verdade monstruosa do mundo: porque parte das coisas é passado e a outra se dissolve no momento em que se é(-sendo), imaginamos, criamos como elã vital. Ou seja, se se diz que o homem inventou o avião para ser pássaro, para emular o voo que não lhe pertence, a câmera é a invenção suprema que solapa, ou mesmo finge solapar, uma deficiência ainda maior: porque não há lugar nenhum aonde a fantasia possa ir, enquadramo-la num sistema serial de mentiras, uma metralhadora do impossível, do já-visto mais. Mais o quê? O aditivo é não a cauda nem a cabeça da serpente mística, mas o círculo inteiro e movediço que ela cria: poética perpassada por tempos que não morrem.
Morreu o professor Antena e seu legado é a transubstanciação erigida em imagem, sequencializada num plano de temporalidades inúmeras, cruzadas: há uma cena particular em que a dupla lança ao cosmos – e aos escritos do professor –, diante de um aquário, como poderia se dar, então, a passagem de uma vida à outra, porque há muito já se fixou que à natureza só cabe a transformação. O aparato desliza, pela primeira vez num movimento duplo de direcionamento consciente, até o hábitat aquático artificial, e interpela-os a voz de Antena – mas não só a voz, eis que ele mesmo, encostado ao vidro, perpetua a verborragia da teoria-práxis, em retorno, e agora o exibicionismo é completo: peixes, enguias, pólipos e rochas dançam a própria linguagem. Sabemos, ali, que a escala evolutiva está derrocada: se está diante – surpresa! – da metamorfose adaptativa ao ambiente aquático. Não mais peixes-porque-não-homens, mas peixes porque se diferenciaram assim. As coisas, então, se transformam. Não porque deixam de sê-lo como são: o mundo se eletriza enquanto grande ensaio místico de mudanças, adaptações, estranhamentos, reconhecimentos. A orquídea se abre numa vulva; o pássaro vem à luz com a sabedoria cálida da montagem do ninho; Antena retorna à imagem não por liberdade esotérico-poética da realizadora: o Tempo já havia pedido permissão para se estilhaçar ao infinito. Tudo retorna, se é que um dia já foi. As coisas estão onde estão, e por pura arbitrariedade.
O cinema não é irreal nem real, encaixa-se, sorrateiro, na lacuna entre ambos: o imaginário. Mas a dobradura que o permite se alocar nesse meio não é da ordem do ser. É uma “outra coisa qualquer que só o indivíduo triunfante que passeou por todas as outras vidas sabe”. Está, pois, além daqueles que o compõem, da sua resultante sensível? Além mesmo daquele que o cria? Se este Indivíduo nos antecede, somos seu espelhamento, sua semelhança? É preciso perguntar mais do que responder. A pergunta abre, multiplica; a resposta encerra. Filmar é lançar questões, regurgitar o inquietante do homem que não se reconhece no reflexo de si, duvidar das palavras e das coisas como a ordem as impõe. Não há ciência onde caibam as hipóteses, não há arte onde sobrevivam os estados. Morreu o professor Antena?