Por Arthur Tuoto
O cinema é esotérico por natureza. Da câmara escura ao cinematógrafo, do espelhamento da realidade a sua restituição fotoquímica, existe um movimento que implica em uma crença. Mais do que um mero progresso natural, o aperfeiçoamento do cinema em um regime narrativo demanda, propriamente, uma fé. Uma ilusão que transcende a materialidade da imagem e opera como uma realidade autônoma. Uma diegese que ao mesmo tempo em que respeita regras próprias, conserva um contrato mágico com seu interlocutor. O pacto ficcional é um dogma imperativo.
Para além da perspectiva extraordinária que qualquer experiência narrativa exija (afinal, é preciso acreditar), a presente edição da Multiplot! busca explorar o místico tanto como uma temática como um método. De um cinema de personagens mágicos (o herói, a feiticeira, o viajante espacial) a uma concepção narrativa metafísica onde a dialética de causa e efeito é subvertida ou mesmo abolida. De uma realidade meramente ambígua à construção de outros mundos. O sobrenatural, o fabular, o mito. Não apenas como motes reveladores de uma composição universal e ancestral, de uma ordem esclarecedora das coisas, mas disparadores de um enigma, uma desordem, uma corrupção que não busca reiterar a tradição, mas renová-la, quiçá destruí-la.
Serge Daney, sobre o modelo ilusionista clássico hollywoodiano, afirma que a psicologia era tratada como “explicação última”. O papel do cinema moderno foi, justamente, recusar esse denominador: o místico (Rossellini), o patológico (Bergman). Quebra-se uma lógica explicativa e impõe-se uma assimilação abrangente. Muitas vezes absolutamente material (o próprio neorealismo italiano), mas reveladora de uma substância hermética. Uma essência que repousa sobre nossos pés. No fim das contas é da terra, em sua bruta e elementar fisicalidade, que brotam os mistérios mais poderosos.
Não é do caráter do místico explicar. Pelo contrário, é o momento de abandonar qualquer refúgio e se entregar a uma disposição outra. Se a nossa edição passada celebrava a morte do cinema em benefício do seu constante renascimento, aqui continuamos nos situando entre estes novos regimes narrativos e imagéticos. Nunca propondo uma interpretação final, mas abrindo portas e janelas que viabilizem uma constante mutação. Universos sensíveis que jamais são um fim em si mesmo, mas que anunciam, a cada nova proposta, uma reorganização própria.
Não é também a aleatoriedade que nos interessa. Ainda que o caos – “único monstro digno de adoração” – permaneça como singular guia confiável, é na “incessante improvisação do universo” que buscamos esclarecer nossas questões. O segredo nunca está nas respostas, mas na experiência que essas obras proporcionam. O sentido permanece na jornada, na ilusão de uma transcendência, já que o caminho continua inevitavelmente aberto. Nunca chegamos a lugar algum e nem vamos chegar.
Para nos abrigar da realidade (essa sim, sobrenatural), o cinema. O místico aliena na mesma medida que revela. Não se comunica, mas se irradia. Imantados por essa paixão e por esse revolta – a fé e a descrença sempre essencial à cinefilia – continuamos atentos a qualquer movimento.