Por Gabriel Papaléo
“Um homem que nasce cai num sonho como um homem que cai ao mar.”
Joseph Conrad
Em certo momento de Three Landscapes, após o primeiro segmento de paisagens, o segundo ato começa com a peregrinação de alguns trabalhadores. Eles ascendem as tubulações em cordas pouco confiáveis, a uma altura impressionante, para realizar seu trabalho provavelmente de limpeza de um letreiro. Esse segmento de dez minutos tem apenas seis planos, variações da observação à distância dos homens que ali sobem, e cuja mudança imagética é evidenciada através da distância mas principalmente da presença de um elemento da natureza no quadro. Em dois quadros, são as árvores em movimento pelo vento; nos outros quatro, as nuvens que passam sem ganhar a atenção dos escaladores. Que o filme de Hutton parta de um registro retratista de uma dimensão fantasmagórica e francamente ameaçadora do ambiente – natural ou fabricado – é fundamental no tratar dessa dimensão política da ideia do trabalho, com seus três atos sobre diferentes formas de exploração ambiental e humana do labor. As nuvens dão profundidade à altura das tubulações, a fumaça das fábricas como evidência simbólica e palpável de uma violência na imagem, o deserto queima seus habitantes através do vapor registrado pelo ângulo de Hutton.
Esses elementos de movimento presentes na natureza são recursos importantes na filmografia de Hutton porque é através deles que se configura essa dimensão mística de intuição imagética dos ambientes filmados como lugares dotados de segredos, misterios do extracampo. A natureza e suas construções, terrenas ou humanas, guardam algo do olhos de quem as encara – e é dessa negociação entre espectador e mundo que Hutton constroi filmes de extrema e basilar fé no desconhecido, uma questão quase espiritual de observação.
Em New York Portrait pt. 1, a investigação parte da cidade mais imortalizada no cinema americano para alcançar o que há de abstratos nas formas de vielas e luzes dali. Os quadros privilegiam a incidência da luz nas paredes através dos mais diferentes filtros “naturais” – as janelas, as nuvens, a neve – para construir um olhar de curiosidade quase solene diante daquela cidade. O caráter retratista dessa primeira parte é reforçado pelos fade outs característicos de Hutton que sinalizam que cada quadro que assim termina funciona como sequência dentro de si mesmo, e a falta de pessoas nessa primeira parte traz uma câmera que intui a cidade como uma das paisagens naturais que o diretor privilegia, uma procura por prédios como sombras, do movimento da água refletindo uma luz desconhecida, carros solitários a vagar, barcos na mar que parecem céu. Quando Hutton filma alguém, a potência do retrato traz uma dimensão de solidão diante da cidade mesmo com toda a beleza dos pequenos atos fugidios naturais que ali testemunhamos, e ter alguém ali brevemente para dar rosto àquele olhar traz a ambiguidade da vida em Nova York – ou em qualquer metrópole. Não por acaso Hutton não usa o fade out após filmar a mulher, cortando diretamente para os papeis ao vento, mostrando que a sequência se completa com o contra-plano de um morador, de alguém tão na janela para a cidade quanto a câmera. O tempo é um quadro à espera, e nas paisagens naturais de Hutton isso se expande.
Em Study for a River, Hutton vai para o franco retrato dos lugares bucólicos, em diários de uma vivência de movimentos e esperas. Os lugares que são filmados com a concisão de uma confiança em que um quadro apenas será suficiente para ilustrar e imaginar o que contém de historia aquele espaço. Organizado como uma pequena sinfonia de espaço (chama-se estudo de um rio, afinal) para passar essa atmosfera de isolamento e contemplação num movimento que parece contínuo, natural, quase etéreo. É novamente um retrato de um ambiente que parece impossível sem deixar de ser palpável todo o tempo. Os navios vem e vão, e podemos deles observar as montanhas como estrangeiros curiosos, nunca acessando esses lugares fisicamente com a câmera, os respeitando pelo mero fato de sermos visitantes cuidadosos da onde vagamos.
Nessa exploração essencialmente mística, observadora paciente, a paisagem não necessariamente aparenta ser física, de assimilação frontal; por vezes aparece como figurativa abstrata, e é isso que ocorre em Skagadjördur, sob o efeito do tempo e da luz, e a escala entre o que fazemos e o que já estava no mundo. Intercala entre recortes absolutamente pictóricos da Islândia como formas e texturas – e por vezes cores – para outros de contextualização espacial mais evidente, nos planos abertos de montanhas e na relação delas com a luz do sol. Observar apenas a luz cair diante do mar, da terra, ou mesmo de uma casa diminuta diante do poder irrefreável do ciclo do dia com seus ventos e nuvens. Hutton filma seus retratos de natureza como se sempre fosse o início dos tempos, e não é por acaso que os filmes se renovam a cada visita, como planetas novos a descobrir.
Desvelar o natural sob dinâmica tão particular, na fé dos astros e luzes como potência de rejuvenescimento, é parte da dinâmica de intuição de Hutton no trato religioso do ambiente, e através da descoberta do sol isso surge em In Titan’s Goblet. O espaço refém da fumaça, como se atrás dela estivessem ruínas, uma breve visitação do fim do mundo na expectativa de encontrar vida. E ela surge, primeiro através da energia exposta por trás das nuvens, depois como vigilante silencioso da Terra que descobrimos. O jogo formal de Hutton é bem direto aqui, usando da vocação da narrativa de retratos para construir esse clímax do titã sol observando a câmera e a terra arrasada na qual ela se encontra, e não tem a variação de imagens e fenômenos para criar novas camadas nessa visitação espacial, mas é um pequeno olhar pacífico e cuidadoso sobre esse mundo metafísico que busca na natureza um sentido. A pintura de Thomas Cole coloca o cálice do Titã do título entranhada na paisagem, uma estrutura gigante em meio ao vale e o mar cuja fumaça não impede completamente nossa contemplação do que há dentro dele. No filme de Hutton, somos convidados a entrar nesse cálice, e ali encontrar uma civilização que já passou, e busca reiniciar através das estrelas.
Existe o artifício nesse confronto entre luz e sombra, e ao filmar a tragédia natural de Boston Fire, Hutton encontra o que há de gravidade destruidora na luz, através do consumo das chamas em um lugar. Nada é sagrado como encarar um lugar e ser contaminado por ele, e quando Hutton fotografa a destruição de um ambiente é com um misto de pesar e encantamento anestesiante que acompanhamos a imagem projetada. Os fades trazem solenidade para aquela morte que testemunhamos, ao mesmo tempo que a fumaça confere algo extraordinário aquele cotidiano, cuja ação ritualística dos bombeiros surge como pintura abstrata de contraluzes. Somos consumidos pela imagem como os homens pela fumaça do final, porque diante do vento e do poder de experiência que o movimento naturalista dá somos apenas olhares a engolir pela imensidão encantada. É uma visão mais sombria que o normal em seus retratos de espaço, e não é pra menos que seja dado o objeto de destruição no qual o filme se baseia.
Contemplar o natural diante do construído, da obra do homem, para atentar ao que vimos e intuimos no trânsito, surge como manifesto em Time and Tide, talvez o mais frontal em discurso dos filmes do cineasta, um canal de trato mitológico na abordagem do que há de fantasioso no movimento.
Ao observar, interferimos no mundo. Do princípio do gelo que é quebrado por onde passamos até a janela circular que recorta a nossa visão, limitada justamente por estarmos em trânsito constante, as sequências giram em torno das formas sutis nas quais a paisagem é modificada pela nossa presença. Se o fugidio é uma das fundações da montagem de Hutton, aqui ele contribui também para conceber essa visita fantasmagórica onde o místico se caracteriza pela câmera não estacionar em quase lugar nenhum por onde passa. Tudo é um quadro a perdermos, e as dúvidas se enfileiram: a correnteza do rio levando para contextos diferenciados, de alteridade nos trens à vista ao longe, da geografia ameaçadora pela grandeza que não retemos por muito tempo, das pontes e cidades na noite porque não tivemos tempo de acessar aquele ambiente quando iluminado, do comentário político das transformações que as fábricas proporcionam fisica e simbolicamente como num filme de James Benning. Time and Tide é um raro filme de Hutton onde a atmosfera é construída através do que vimos e perdemos, tocando apenas pontualmente no caráter retratista do presente de acompanhar um ambiente estático em transformação – e o relato pessoal do diretor em primeira pessoa sobre um histórico de registro em movimento que passa pelos 18 quadros por segundo do 8mm em preto e branco até o 16mm colorido que encerra a jornada.
O corpo da memória através da paisagem como registros de uma natureza em transformação torna-se base de observação ao longo da progressão de sua carreira, mas Hutton fora cuidadoso ao ser literal pontualmente em filmes como Landscape (for Manon) e Florence, nos quais a natureza se manifesta prestes a acordar sob nossos olhos. É de uma calma, observadora paciente como quem está para descobrir um mundo. A capacidade de olhar transformando lugares que parecem inóspitos, parecem alienígenas, mas nunca perdem uma dimensão presente bem possível. As fusões para o preto que marcam cada uma das paisagens como se elas se contivessem entre si, luzes que incidem e nada mais. O tempo passa, a criança sonha com o mundo, uma imagem particular em sua filmografia ao dar literalmente um rosto juvenil à curiosidade, como em Florence, filme atípico de Hutton sobre memórias de infância. Uma casa recortada por reminiscências difusas como a luz que atravessa os lugares, que se modifica e morre diante dos nossos olhos, lacunas abstratas de organização de espaços por conta da falta de contexto. Encerra-se o dia, as memórias acabam, naquilo que parece ser um lembrete visual de vagos acontecimentos numa vida a esquecer.
E o que é viver no mundo sob ideias de contaminação natural da beleza desafiadora da fantasia, encantamento constante, senão uma oportunidade política de retratar o preço das nossas interferências? Logo no princípio de At Sea, um quadro mostra as vigas de um porto em profundidade. Lentamente elas se rearranjam, enganando a profundidade de campo do olhar, transe particular daquele ambiente de trabalho de repetições ilusórias. O ar alienígena desse quadro, o mistério do movimento coordenado que se confunde diante da distância focal da câmera, as profundidades que se embaralham em busca do mágico. É quando vamos ao mar que a materialidade se dissolve. Na terra firme, as pessoas lidam com o peso da escala, da diferença entre seu tamanho e dos navios ou edificações que precisam do trabalho desses homens, sob a câmera de Hutton um trabalho que parece impossível por uma questão de proporção. Os fósseis de concreto que se acumulam na praia, o prédio destruído mas ainda habitado pelos que ali fazem manutenção, uma tarefa material. Hutton filma os contêineres sob um ponto de vista apenas ao zarpar com o navio para observar as diferentes incidências das luzes ao longo do dia, o reflexo vermelho, amarelo e escuro como variações de tempo intangível interferindo na dimensão concreta do que é forjado pelo humano.
Quando está no mar a abstração aparece, destitui a materialidade dos objetos, e o olhar da câmera privilegia o pôr do sol, a água revolta, a paisagem à distância cujo caráter pictórico inexiste diante das concretudes do porto, da praia, dos lugares habitados por humanos. O mundo está liberado para imaginar e sonhar quando o trânsito aparece na vida de quem olha, e quando estamos aportados a tarefa de cuidar do que é concreto e existe parece grandiosa demais para dar conta. Tudo no porto é quase estático, com dinâmica lenta e pouco progressiva, e essa visão particular do tempo causa uma suspensão de imagem que potencializa os momentos de movimento; quando o navio é inaugurado, a explosão do balão e a revelação do título surgem como pequenos milagres, como clímaxes, porque a noção de movimento foi ressignificada. Não há elogio maior às imagens do que tornar palpável a dimensão da importância delas em movimento.
No terceiro ato, o cemitério dos navios, a destruição total de um feito gigante do homem que termina sua vida sendo despejado na praia de quem não é privilegiado economicamente. Situar esse final em uma comunidade à beira-mar em Bangladesh traz a dimensão social do impacto dos grandes símbolos do capitalismo como Hutton veio a fazer mais tarde em Three Landscapes. Um dos navios gigantes é despedaçado pela população, numa tarefa visivelmente mais hercúlea do que a dos portos – enquanto aqueles eram estruturados por máquinas e organizados como miniaturas padronizadas por Hutton, o vazio da praia em Bangladesh é diminuto comparado ao porto, e os trabalhadores dali dispõe de ferramentas evidentemente mais primitivas. No capitalismo globalizado a diferença de condições de trabalho é sobretudo uma ideia de escalas, de proporções, e se o trânsito é abstrato e fugidio a terra firme é feroz nas suas cobranças materiais. Não existe o fascínio pelo movimento ali, a tarefa parece árdua demais.
O fascínio que existe é pela imagem e pelo contato humano (e quando Hutton filma pessoas esses dois tendem a ser indissociáveis), e a interação daquelas pessoas com a câmera ao pausar sua atividade de eras revela que a suspensão do sonho do mar pode ser obtida mesmo que por um breve instante, uma sensação de pertencimento e compartilhar de possibilidades – o que certamente não resolve a questão. Os leviatãs aportam bem e enferrujam mal, e o cômodo é aos países privilegiados criar seus monstros para despejá-los nos subdesenvolvidos que trabalham para sobreviver com seus mitos não-requisitados. Os operários de Three Landscapes labutam no sal e observam os camelos como miragens impalpáveis, e os ribeirinhas de At Sea levantam suas cordas para puxar algo que parece fossilizado há séculos ali. Dimensões impossíveis do movimento que trazem uma magia própria, tão fascinante quanto implacável – para Peter Hutton o estético e o social estão entranhados na imagem, e é possível traduzir por breves minutos a ambiguidade da beleza misteriosa e sem respostas do que está por aí nas paisagens.